António João Maia, Expresso online (105 06/01/2021)

 

 

O alongar deste processo provocará o mais que previsível agravamento dos problemas sociais e económicas, que são já profundos

Pronto, finalmente virámos a página do calendário e entrámos no ano da esperança das nossas vidas.

Sim, o ano da esperança! O ano em que o vírus, a pandemia e os sucessivos estados de confinamento que ela trouxe consigo, mais os desinfetantes, as máscaras e os afastamentos sociais que, como uma espécie de asfixia, nos atiraram para uma vida estranha, assética e quase sem sentido, se vão afastar para dar lugar à confortável normalidade que conhecemos e da qual tantas saudades temos.

Foi este, por certo, o mais transversal dos desejos formulados pelas pessoas de todo o mundo com o badalar da passagem do ano 2020 para 2021.

E, para reforçar este cenário de esperança, notícias e imagens do início do processo de vacinação contra ao vírus um pouco por todo o lado.

Aliás, o resultado da pesquisa palavra do ano 2020 realizada entre os portugueses por estes dias revela que a palavra mais indicada para caracterizar 2020 é mesmo a “saudade”, deixando para trás termos como “confinamento”, “Covid-19”, ou “pandemia”, entre outros.

Este tem sido de facto um contexto social atípico, profundamente marcante para toda a população mundial.

Mas estes sinais de crença e de esperança, que são sem dúvida de grande importância, não são ainda muito mais do que isso. São laivos de luz ao fundo de um túnel que todos atravessamos, mas no qual ainda subsistem algumas zonas obscuras.

Desde logo porque, tanto pelo que nos têm dito como pelo que temos visto, o processo pandémico persistirá por mais alguns meses (quantos?), pelo menos enquanto o processo de vacinação não alcançar uma parte substancial da população. Até lá, todos os cuidados que conhecemos vão continuar a ser necessários. Vão por isso continuar a subsistir as diversas medidas de confinamento que já conhecemos e que requerem o envolvimento responsável de todos.

Depois, porque o alongar deste processo provocará o mais do que previsível agravamento dos problemas sociais e económicos que são já profundos, como sejam as perdas substanciais de receitas das empresas e dos Estados, o aumento dos índices de desemprego provocado pelo fecho de muitas empresas, sobretudo das mais debilitadas, o aumento dos custos das funções do Estado associadas às prestações de cuidados públicos de saúde e aos apoios e prestações sociais, como o subsídio de desemprego, ou o estímulo à economia, entre outras.

E também porque, para procurar minimizar todos estes problemas, se anunciam, ao nível da União Europeia, apoios financeiros de monta a todos os Estados-membros, perspetiva suscetível da atração de fenómenos de natureza fraudulenta e corruptiva, que carecem de adequadas medidas e cuidados de controlo, de prevenção e punição, para que o cidadão não seja prejudicado também por esta via, nem para que se perca a confiança nas instituições.

Mas nem todos os efeitos das medidas adotadas têm sido negativos.

Vejam-se por exemplo os efeitos decorrentes da redução da emissão de gases poluentes na atmosfera, por redução do tráfego automóvel nas grandes cidades e também por redução das viagens aéreas. O estudo COVID-19 and Europe´s environment: impacts of a global pandemic, recentemente publicado pela União Europeia sobre as alterações da qualidade do ar, revela que em Portugal o nível de concentrações de poluentes apresentava, em Abril de 2020, uma redução de 46% sobre os valores registados entes do confinamento.

E a redução da poluição sonora e da utilização de plásticos são também alguns dos efeitos positivos que o mesmo estudo associa às medidas de confinamento adotadas pelos Estados.

Por outro lado, os autores do relatório Living planet report 2020 - bending the curve of biodiversity loss apelam para a necessidade de se repensar todo o modelo que tem sido utilizado na exploração dos recursos naturais, que se tem caracterizado por uma elevada intensidade erosiva, considerando que o contexto das medidas de confinamento adotadas e os seus efeitos de redução da erosão sobre o planeta e os seus recursos possa ser um elemento novo de grande importância a introduzir na reflexão a partir de 2021 sobre a preservação equilibrada e racional do planeta que habitamos.

Confesso que este foi também um dos desejos que formulei.

Mas, interrogo-me, terá o ser humano o engenho, a arte e sobretudo a motivação suficientes para conseguir esta alteração de paradigma, esta espécie de revolução cultural na forma como nos relacionamos com o planeta e a natureza?