Carlos Pimenta, Expresso online (106 13/01/2021)

 

 

 

A FRAUDE NÃO É UM ACIDENTE DE PERCURSO

A fraude não existe hoje apenas como um acidente de percurso resultante da ganância de alguns concomitantemente com a falta de respeito pelos interesses sociais, mas, desde a década de 80/90 do século passado, de uma forma sistemática, com impactos mundiais e com procedimentos inerentes a uma crescente organização.

O enorme volume de operações ilegais, a liquidez que elas permitem, o volume de branqueamento de riqueza actualmente existente e a grande dificuldade de a combater, concomitantemente com a crescente organização da criminalidade internacional, a sua capacidade para aproveitar a financiarização da economia, a expansão da criminalidade de colarinho branco, as fraquezas de vários Estados e as falta de liquidez nas economias de crise, aumentou, e aumenta, a importância da criminalidade organizada nas nossas sociedades.

A rápida expansão, ampliada pela presente pandemia, das novas tecnologias (a tendência de generalização dos computadores, dos telemóveis, dos tablets, todos utilizando a internet) com crescentes capacidades e crescimento das velocidades de comunicação, torna a ciberfraude, persistente e mutante, e os sistemas de segurança particularmente importantes.

UM DOCUMENTO FUNDAMENTAL

Logo, a cibersegurança e o seu respeito pela ética é uma questão central do mundo contemporâneo. Uma necessidade sentida por muitos que foram este último ano crescentemente vítimas destas tentativas de fraude ꟷ nomeadamente a extorsão indevida de 1 € a muitos milhares, roubos de identidade, etc. ꟷ, mas também ignorada por muitos ꟷ vilipendiados e usados sem o saberem.

Dada a crescente importância destes assuntos para cada um e para a sociedade, são de particular importância os diversos Relatórios Cibersegurança em Portugal, chamando a atenção de todos os leitores para estas problemáticas e, particularmente para um recentemente publicado dedicado à “Ética e ao Direito”. Dele retiramos os seguintes aspectos:

  • “A insegurança no ciberespaço e os mecanismos de controlo e protecção cibernéticos podem ter efeitos devastadores para a dignidade da pessoa humana, com o potencial de afetar valores como a privacidade, a propriedade, a liberdade, a saúde ou mesmo a vida.”
  • “Os fornecedores de cibersegurança têm de lidar com os desafios éticos associados ao conhecimento dos limites da sua própria atuação: saber até onde devem ir para garantir os propósitos de segurança e integridade das redes, sem contender com os interesses e direitos fundamentais dos vários agentes envolvidos.”
  • “A heterogeneidade dos contextos em que atua a cibersegurança e a celeridade a que se verificam as transformações tecnológicas inviabilizam a implementação de diretrizes éticas estáveis e uniformes.”

Estas realidades chamam à atenção de que não está em causa apenas a fraude e o roubo dos indivíduos, mas as formas de organização do Estado e da sociedade. A complexidade e gravidade da situação exige a intervenção de todos nós ꟷ no comportamento individual e colectivo ꟷ aconselhando também formas de intervenção do Estado e de todas as componentes da sociedade.

Analisemos mais detalhadamente a situação.

DAS REDES SOCIAIS AO CAMBRIDGE ANALYTICA

A Microsoft permitiu com o seu sistema operativo Windows a multitarefa, hoje espontaneamente assumida por todos como o «habitual». A Internet permitiu superar a diversidade de protocolos de comunicação entre computadores e alargou as possibilidades de «diálogo» a todos os cidadãos. As redes sociais facilitaram essas possibilidades, donde resultou o reencontro de familiares, de amigos, da maior facilidade em encontrar doadores e receptores, etc. A Google, e outros, potenciam todas estas facilidades, ajudaram a banalizar a utilização do correio electrónico, permitiram a comunicação entre povos de línguas diferentes e muito mais.

Em síntese, depois de vários anos em que a difusão da inovação nas novas tecnologias, na actualidade, sem as abandonar, concentram-se essencialmente na difusão de novos programas informáticos que permitem a comunicação, as nuvens de dados e elementos similares, assim como a protecção individual contra os excessos sentidos das novas realidades. Contudo, simultaneamente há também muitos aspectos negativos nesta nova dinâmica: difusão, por vias difusas e a uma velocidade estrondosa, de notícias falsas; a manipulação dos cidadãos por estas, o isolamento da realidade (chegando às doenças mentais, flagelação física e até suicídios). O terrorismo utilizou estas vias. Criaram-se muitas fraudes novas e modificaram-se muitas das antigas, dificultando a sua detecção. Roubaram-se imperceptivelmente muitos dados e arruinaram-se muitas vidas. Consolidou o branqueamento de riqueza e fortaleceu-se a criminalidade organizada, permitindo a generalização e mundialização daquela.

A Cambridge Analytica, com a manipulação do eleitorado que permitiu a eleição de Trump ꟷ culminando nos acontecimentos recentes que indignaram o mundo ꟷ mostrou, no entanto, de uma forma clara os aspectos negativos da dinâmica informática recente: algumas campanhas eleitorais utilizam exclusivamente as redes sociais, alguns populistas e ditadores utilizam preferencialmente essa via. Por outras palavras, podemos dizer que as redes sociais frequentemente servem preferencialmente para combater a democracia, negociar o futuro da humanidade.

A Cambridge Analytica ꟷ tornando público o que era privado (de mais de 87 milhões de cidadãos), difundindo notícias falsas e parciais, algumas representando um atraso civilizacional (como a da Terra ser plana) – iniciou novos processos de manipulação dos cidadãos, totalmente ignorados pelos próprios.

Simultaneamente contribuiu para a maneira geral de se ser, estar e sentir, como é o caso, por exemplo, da predominação do curto prazo na organização futura da vida quotidiana.

É fácil perceber isto. Justamente as empresas vivem para ter lucro. As empresas de software como as redes sociais ou o Google são usadas por todos nós de forma gratuita. A publicidade é a sua via de negócio e os anunciantes são os seus clientes, os quais optam pelas redes sociais casos tenham, por essa via, maiores probabilidade de sucesso. Contudo isto só acontecerá se as redes sociais usarem os seus utilizadores como o seu produto. Como diz Tristan Harris, responsável do Gmail, no filme «O dilema das redes sociais», o grande negócio das redes sociais é vender os seus usuários.

Recorrendo a algoritmos vários, à Psicologia, às Neurociências e à Inteligência Artificial manipulam-nos: invadindo a nossa privacidade, aumentando a nossa dependência de equipamentos e programas ꟷ sem termos disso consciência ꟷ, aumentando os «amigos», etc. Enfim, conhecendo-nos, influenciando-nos, vendendo os nossos usos e costumes como consumidores e cidadãos.

QUE FAZER?

Fiscalizando, impedindo os abusos e potenciando as virtualidades, condicionando e regulando.

Como?