Jorge Fonseca de Almeida, Dinheiro Vivo

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Quando os nossos governantes tomam decisões que se revelam a um tempo ousadas e certeiras há que lhes tirar o chapéu e dar os parabéns. Por erradas resoluções adotadas em Dezembro, Portugal tornou-se durante semanas o país com mais mortes por milhão de habitantes do mundo. Centenas de milhões de pessoas que não suspeitavam sequer que o nosso país existisse ou tivesse vida separada de Espanha descobriram-no nas notícias sobre o avanço mortal da doença. Que golpe publicitário genial. Contudo o Governo alertado para a gravidade da situação arrepiou caminho e tomou medidas de longo alcance como um confinamento parcial, que excluiu quase todas as profissões que não sejam passíveis de teletrabalho, e o regresso ao ensino à distância. Quase um mês passado e graças a estas corajosas medidas Portugal já não é o país com mais mortes por milhão de habitantes do mundo do mundo é agora o segundo (embora quase colado ao Perú que é agora o primeiro). Fantástico. É caso para dizer: bom trabalho.

Os especialistas aplaudem, os deputados do PS rejubilam, os governantes sorriem modestos, a comunicação social rendida, o país agradecido. Podemos descansar já não somos o pior do mundo, passamos para segundo pior e estamos no bom caminho. Provavelmente quando a população portuguesa se tiver reduzido a metade estaremos mesmo na média mundial. É só esperar mais uns anos. Que mais podemos ambicionar. Roma e Pavia não se fizeram num dia e, portanto, demos tempo ao tempo. Que maravilhosos governantes temos. Deixamos de ser o pior. Rejubilemos. Somos agora o segundo pior. É maravilhoso.

Em termos de vacinas também temos uma logística impecável. Vacinámos com a primeira dose 1% da população num mês. Que rapidez. Que velocidade digna dum campeão. Só precisamos de 100 meses para vacinar toda a população com a primeira dose, a segunda virá depois. Um pouco mais de 8 anos. Que feito digno. É preciso condecorar rapidamente os responsáveis. Vi na televisão que foram vacinados jovens membros saudáveis das forças de segurança enquanto os idosos morrem semanalmente às centenas. Que correta prioridade esta. Proposta pelos mais eminentes epidemiologistas do país. Sem estes especialistas, formados na nossas iminentes universidades, onde estaríamos? Seriamos certamente o primeiro ou o segundo país com maior mortalidade por milhão de habitantes do mundo.

Podemos orgulhar-nos de ao contrário de outros países por cá os governantes serem guiados pela ciência e ouvirem atentamente os professores universitários. Aliás muitos deles são mesmo professores universitários. Se fossemos como certos outros países, que não ouso nomear para não os envergonhar, seriamos certamente o primeiro ou o segundo país com maior número de mortos por milhão de habitantes do mundo.

E no topo disto tudo temos uma democracia invejável. A liberdade de expressão é total. Podemos elogiar oficiais que se gabavam publicamente das atrocidades que cometeram na guerra colonial e que foram condecorados pelo regime fascista. Podemos insultar comunidades inteiras acusando-as falsamente. Podemos propor a deportação de adversários políticos. Ameaçá-los de morte. A liberdade é maravilhosa. O Dr. Salazar era um grande adepto desta liberdade e ele foi, como se sabe, um Grande Português.

O que não permitimos é que dirigentes antirracistas abram a boca ou se prenunciem ou que participem em grupos de trabalho sobre matérias que não dominam como ... o racismo! Aí gritamos em uníssono e na maravilhosa liberdade de que usufruímos insultos e impropérios. Para que não seja ouvido. Para que a sua mensagem seja deturpada. Para que não chegue aos ouvintes e leitores. Respiramos liberdade. Faz-nos recuar aos anos 30 do século passado em países desenvolvidos como a Itália ou a Alemanha. Bons tempos.

Mudando de tom. Não é com esta cultura e com esta mentalidade que Portugal pode sair da estagnação em que se encontra há duas décadas e que nos empurra para o fundo. Precisamos de outra cultura. Precisamos de rigor e exigência com os governantes, de afastar o racismo e abraçar a diversidade, de encarar a História salientando o bom mas assumindo responsabilidade pelo que de mau e de criminoso foi feito como a escravatura, o colonialismo, a discriminação.

Olhemos o exemplo de outros países com Histórias pesadas como a nossa que se debatem com coragem para repor a verdade histórica e procurar formas reparadoras do impacto geracional dos erros do passado.

Está hoje demonstrado que o desenvolvimento económico e social depende de como encaramos a realidade e os desafios que esta nos coloca. Quanto mais de frente, melhor.