Óscar Afonso, Expresso online (103 23/12/2020)

 

 

Um dos maiores negócios da história do nosso país, que tem por objeto o valor da exploração de um bem do domínio público situado no Interior, ou como o Estado deveria ter prevenido o planeamento fiscal agressivo, permitindo assim a promoção da coesão social e territorial

No dia 17 de dezembro, a EDP anunciou a conclusão do negócio de venda de seis barragens, três delas no Douro Internacional, em plena Terra de Miranda. Por via de uma complexa operação financeira, que envolve uma declarada reestruturação empresarial, o negócio, avaliado em 2,2 mil milhões de euros, foi feito sem que houvesse lugar ao pagamento de impostos. A operação dependia de autorização prévia do Governo, uma vez que envolve o valor da exploração da água do rio, que é, como sabemos, um bem do domínio público.

Efetivamente, a ser como referido na comunicação social, o Governo, através do Ministério do Ambiente e da Ação Climática, autorizou que, desse modo, a EDP tivesse um encaixe financeiro de 2,2 mil milhões de Euros, sem que houvesse lugar a cobrança do Imposto do Selo, no valor de 110 milhões de euros, bem como os naturais impostos sobre as mais-valias, dado que a EDP havia comprado (ao Estado) o bem que agora vende por cerca de um terço do que agora recebe. Foram, assim, claramente beneficiados interesses particulares acima do interesse geral.

Tratando-se de um dos maiores negócios da história do nosso país, que tem por objeto o valor da exploração de um bem do domínio público situado no Interior, envolvendo por empresas com elevado poder económico, seria de esperar que o Estado prevenisse o planeamento fiscal agressivo e permitisse a promoção da coesão social e territorial.

Como referido acima, três das seis barragens, as mais produtivas, situam-se na Terra de Miranda – duas no concelho de Miranda do Douro e uma no concelho de Mogadouro. Ora, os dados estatísticos revelam que paralelamente ao engrandecimento da EDP, a Terra de Miranda registou uma trajetória de empobrecimento, de despovoamento (perdeu mais de metade da população desde a construção das barragens) e é hoje uma terra muito deprimida, com uma sociedade civil demasiado envelhecida e, por isso, extremamente enfraquecida e com o futuro ameaçado. É uma Terra que desespera para não morrer.

Tendo em conta a riqueza das pessoas que lá vivem, os PIB per capita de Miranda e de Mogadouro posicionam os concelhos, respetivamente, nas posições 182 e 225 entre os 308 que o País tem. Ou seja, mesmo sem terem população, ainda assim, o PIB per capita é miserável e alimentado por três origens principais – os orçamentos camarários, pelos empregos de que as autarquias necessitam para funcionarem, os subsídios à agricultura no âmbito da PAC, e a fraquíssima atividade produtiva. No entanto, tendo em conta a riqueza efetivamente produzida; i.e., contando também a ação das barragens, o PIB per capita de Miranda passa para 5.º do País e o de Mogadouro para 25.º. Por conseguinte, a Terra de Miranda não é pobre: está empobrecida por ter estado sujeita à extração dos seus recursos naturais.

Hoje, em Miranda, vive-se mal, cada vez pior, porque à medida que se foi perdendo população foi-se também descapitalizando. O que incomoda é a contradição entre o viver cada vez pior e a existência de um recurso, a água, que permitiria ter vivido sempre bem. O que incomoda é, portanto, a existência de duas dinâmicas distintas: a atividade económica, social e cultural da Terra de Miranda em queda; a grandeza da EDP em ascensão. Creio que todos os portugueses se congratulam com a grandeza da EDP, mas também penso que não se pode ser “rico” à custa do empobrecimento de outros; que o empobrecimento contínuo da Terra de Miranda, em particular, não favorece os portugueses mais do que o engrandecimento da EDP.

Seria de esperar que a EDP praticasse para com a Terra de Miranda o valor e compromisso da sustentabilidade que diz defender. A este propósito, diz-nos a EDP que assume as responsabilidades sociais e ambientais que resultam da sua atuação, contribuindo para o desenvolvimento das regiões onde está presente. Sejamos sinceros, com a Terra de Miranda tal não aconteceu. Será então pura retórica?

Enquanto a EDP se engrandecia a Terra de Miranda foi definhando. A EDP não foi inclusiva, não cumpriu o compromisso da sustentabilidade, foi sempre extrativa do recurso natural água que o Douro leva por aquela terra. Os mirandeses tinham agora a expectativa de que, com a venda das barragens, a EDP se redimisse e contribuísse para a melhoria da massa crítica social, da atividade cultural e económica da Terra de Miranda. Seria então recordada dessa maneira. Mas, infelizmente, tal parece não vir a suceder. A forma como decorreu a operação de venda das barragens indicia que, com a conivência do Governo, não há sensibilidade social nem defesa do interesse público e que a exploração é para levar até ao último cêntimo, privilegiando o interesse particular contra o interesse geral e contra a coesão social e territorial.

No negócio em curso da venda das barragens, os 2,2 mil milhões de euros, que são o preço da transação, refletem o valor atual dos lucros (futuros) com a concessão. Desse modo foi possível apurar o margem de lucro da EDP por unidade de energia produzida e, aplicando-a à produção acumulada desde a instalação das barragens, obter o valor do ganho: pelo menos 5 mil milhões de euros ao longo dos últimos sessenta anos. Ou seja, a EDP extraiu cerca de 7 mil milhões de euros (o equivalente a oito pontes Vasco da Gama) da Terra de Miranda, a troco do seu empobrecimento. E, sejamos honestos, essa enorme riqueza é riqueza da Terra de Miranda, que lhe foi extraída.

Efetivamente, com a venda das barragens, o ativo vendido mais importante não foram as turbinas, nem os edifícios, nem a gestão, nem sequer o know how. Os ativos mais valiosos que foram vendidos são proporcionados pelos recursos naturais da Terra de Miranda: a água, o declive do rio Douro internacional e a morfologia das suas margens. Sem estes recursos naturais, as barragens não teriam valor económico! Tal como o trabalho e o capital, também os recursos naturais são fundamentais para a atividade económica do País.

Ora, as populações, cujo destino está indissociavelmente ligado aos seus recursos naturais, em todas as partes do mundo (só para citar um exemplo muito simples, as praias do Algarve são a riqueza que permite aos algarvios ter um PIB per capita relevante), não podiam ser absolutamente ignoradas e desprezadas neste negócio final. No mínimo, deveriam saber o que se fazia, qual ia ser o destino dos seus recursos naturais nos próximos anos ou décadas e, a menos que o Governo deseje que a Terra de Miranda se torne terra de ninguém, deviam receber pelo menos parte das contrapartidas que lhe seriam devidas. Creio que todos concordarão que, caso a venda tivesse – como devia – dado lugar aos 110 milhões de euros de Imposto do Selo e esse valor fosse entregue às populações, seria sempre insuficiente para as compensar de toda a riqueza que lhes caberia num modelo justo de repartição dos benefícios. Ao optar por não cobrar esse valor, que corresponde apenas a cerca de 1,57% da riqueza extraída pela EDP da Terra de Miranda, optou-se por continuar a penalizar os mirandeses e os portugueses em geral. Será que este procedimento é próprio de um país civilizado?