José António Moreira, Expresso online (102 16/12/2020)

 

 

O comprador online tem de agir como se estivesse embrenhado numa selva desconhecida e cheia de perigos, onde tem de procurar proteger-se do que de danoso pode surgir em cada página que visita. Mesmo assim, o risco nunca desaparece completamente

A reclusão caseira provocada pelas medidas de contenção da covid-19 tem, paulatinamente, vindo a mudar os hábitos de compra. Nalguns casos por necessidade, mas cada vez mais por comodidade, já nem se pensa em ir a uma loja física comprar os produtos de que se necessita. Abre-se o computador, pesquisam-se potenciais vendedores, encomenda-se, faz-se o pagamento e acredita-se que tudo correrá bem. Cenário 1 A empresa vendedora é conhecida. O risco de se ser defraudado por falta de entrega do produto é muito reduzido. Os restantes riscos e possibilidades de litígios, por exemplo por defeito do produto adquirido, não serão muito diferentes dos existentes na compra em loja física. Cenário 2 A experiência de compra começa com a procura de empresas vendedoras do produto. Plataformas de “e-commerce” como a KuntaKusta tendem a ser o primeiro local de visita. Aí se encontra, com facilidade, uma lista de empresas fornecedoras (muitas delas conhecidas), a proposta de preço de cada uma e detalhes sobre o prazo e despesas da entrega. Neste cenário o risco não está na não existência da empresa vendedora. As plataformas em que ela se domicilia, ao exigirem uma inscrição prévia, controlam a respetiva existência. O risco está, sobretudo, num eventual não cumprimento das condições da oferta, nomeadamente prazos de entrega (o que também pode acontecer no cenário 1). Imagine o leitor que está numa situação de compra deste tipo, a empresa que propõe a melhor oferta financeira é-lhe totalmente desconhecida. Tenha calma. A poupança de uns quantos euros na compra, sempre apetecível, não deve toldar-lhe o discernimento no momento da decisão da compra. Essa poupança virtual pode vir a desvanecer-se no futuro, face à resolução de eventuais conflitos supervenientes. Se a plataforma disponibiliza comentários de anteriores clientes dessa empresa, ou um indicador do grau de satisfação em anteriores compras, o leitor tem a sua decisão de compra facilitada, podendo tomá-la de modo mais alicerçado. Porém, se essa informação não está disponível o processo de compra não deverá terminar aí. O leitor abra o motor de busca e faça uma pequena pesquisa sobre essa empresa. Por exemplo, “empresa X reclamações”. Mais vezes do que seria esperado e desejável, vai encontrar informação sobre a empresa que o ajudam a ter uma mais concreta perceção do risco de com ela transacionar: “a empresa demorou mais de duas semanas a entregar o produto, quando se propusera entregá-lo ao fim de dois dias”; “o produto ainda não chegou e a empresa não atende os meus telefonemas”; “a encomenda não chega e não encontro um endereço ou número de telefone para onde possa ligar”. Informações deste teor levarão o leitor, certamente, a equacionar se tal empresa é o parceiro comercial com quem quer negociar. Este cenário e o anterior correspondem, metaforicamente, ao atravessar de uma rua na passadeira. Há sempre o risco de se poder ser atropelado, mas é bastante reduzido e tende a diluir-se na medida em que o comprador, antes de colocar o pé na passadeira, olhe para ambos os lados da rua para se certificar de que não há um condutor distraído na via. Cenário 3 O mais arriscado, em que o comprador procura transacionar em terreno aberto, cheio de perigos. Corresponde a atravessar uma rua de grande movimento fora da passadeira. O risco de ser atropelado é elevado, i.e. o risco de ser financeiramente defraudado, por via de o pagamento que efetuou nunca vir a ter como contrapartida a chegada do desejado produto que adquiriu, aquela pechincha que lhe toldou a razão. Imagine o leitor que quer comprar uns ténis de marca, aqueles com que há muito tempo sonha para o acompanharem nas suas caminhadas, mas que só agora tem disponibilidade para adquirir. Vai às plataformas do costume, as propostas de venda que recolhe são um pouco mais atrativas do que as da loja física que há tempos visitara, mas não são ainda a pechincha que deseja. Alarga a sua pesquisa, insere palavras-chave no motor de busca, começam a aparecer outras propostas, esta sim atraentes. Alguns dos proponentes vendedores até têm um “site” atrativo, a proposta é irrecusável, até só há dois pares disponíveis. Recolhe o IBAN para a transferência, fecha a compra, já se vê com os bonitos ténis nos pés. Os dias passam e nada chega. Volta ao “site” e não há canal de contacto para deixar uma mensagem ou para efetuar um telefonema. Sente que algo não está bem. Olha, agora, para o endereço eletrónico do “site” e não consegue perceber em que país está domiciliado. Faz uma pesquisa na internet, mas não há informação sobre a empresa/vendedor, para além do dito “site”. Teme o pior. Tem razão para isso, como vem a comprovar. Neste cenário, o comprador deveria ter presente, antes de concretizar a compra, aquele célebre provérbio “quando a esmola é grande o pobre desconfia [deve desconfiar]”. É difícil, efetivamente, resistir a uma esmola grande. Mas, para alguém em tal situação, a respetiva desconfiança é, na verdade, a única proteção que tem contra a fraude de que está prestes a ser vítima. O olhar para o endereço eletrónico do potencial vendedor e procurar situá-lo geograficamente; o pesquisar informação sobre o vendedor e se nada aparecer não presumir que se trata de um aspeto positivo; o questionar-se sobre como é possível que alguém consiga propor tal pechincha … Se não tiver respostas que respondam cabalmente a dúvidas como estas o comprador racional deveria “partir para outra”, procurando fornecedor alternativo para os seus ténis, mesmo que custem um pouco mais. Epílogo Fazer compras “online” não deve ser encarado como um jogo de sorte e azar, como uma roleta russa. A racionalidade do comprador, mais do que a emoção inerente a uma pechincha, deve preponderar. Ele tem de agir como se estivesse embrenhado numa selva desconhecida e cheia de perigos, onde tem de procurar proteger-se do que de danoso pode surgir em cada página que visita. Mesmo assim, o risco nunca desaparece completamente. As autoridades alertam para a frequente ocorrência de fraudes em compras “online”, peritos em segurança afiançam que os defraudadores estão a viver um momento áureo das suas vidas e que é mais fácil defraudar quem anda à procura de uma pechincha, do que roubar rebuçados a uma criancinha. Até por isto, todo o cuidado é pouco.