Mário Tavares da Silva, Expresso online (097 11/11/2020)

 

As prioridades são, por conseguinte, muito claras. Recordar os mortos, sempre. Tratar os vivos, todos, sem exceção. E cuidar já, atentamente, dos novos pobres que a covid-19 provocou e vai continuar a provocar. Sem esse cuidado, o número de óbitos será, mais à frente, certamente mais impressivo e isso, estou certo, é tudo o que não se deseja

É hoje incontornável para todos o tremendo e significativo impacto que a pandemia provocada pelo coronavírus teve (e infelizmente continua a ter), em maior ou menor medida, um pouco por todo o mundo. O vírus chegou e não titubeou, fazendo refém a até agora sagrada e intocável soberania dos Estados. É, ao fim e ao resto, a pungente e implacável “soberania” ditada por um terrível vírus que a todos subjuga, sem espaço e sem tempo para a mais ínfima reação. São, nesta medida, tempos difíceis e de inigualável sofrimento aqueles que a humanidade presentemente vive. Impotente, assiste ao curso da História, sem que seja capaz de virar, como sempre ousara fazer, esta tenebrosa página que aos olhos de todos, persiste em manter-se aberta. São dias estranhos, de incerteza, de angústia e, também, pasme-se, de novas oportunidades. Nos últimos meses, talvez ditado pela urgência e emergência de respostas rápidas ao agravamento da situação que um pouco por toda a parte se tem feito sentir, não se tem falado noutra coisa senão da covid-19 e, porque não indiferente àquele agravamento, das recentemente realizadas eleições presidenciais americanas. Assim, é a covid-19 e as eleições americanas que tem pontuado, em prime time, a agenda mediática dos últimos tempos, como se nada mais existisse no horizonte das prioridades. Vivemos, por assim dizer, um tempo de incompreensível cegueira coletiva em que apenas interessa combater e erradicar definitivamente o vírus, custe o custar. E já agora “erradicar” aqueles que, como Trump, tanto contribuíram para a sua propagação. O ecossistema em que ainda respiramos assemelha-se em tudo a uma fobocracia, em que o medo domina, prolonga-se, espalha-se e deixa todos, sem exceção, mais ansiosos quanto ao amanhã. É um medo (do grego “phóbos”) poderoso (do grego “krátos”) e intenso este que nos assola e paralisa, confinando-nos atrás das portas de nossas casas e impedindo-nos de ser quem somos. Um medo que nos faz mais pobres, sobretudo de afeto dos que nos são mais queridos, mas, mais importante ainda, também mais pobres, na trágica e comum aceção de pobreza. Na realidade, até ao início deste annus horribilis, os números de redução da pobreza extrema eram globalmente encorajadores, tendo mesmo o Banco Mundial reportado uma diminuição de 42% da população vivendo abaixo da linha da pobreza em 1981 para 10% em 2017, o que constituiu, indubitavelmente, um dado muito positivo no combate global à situação de pobreza extrema, para mais num quadro em que a população global aumentou no mesmo período de 4,5 mil milhões para 7,5 mil milhões. Dada a boa evolução da situação, previa-se, inclusive, que a taxa de pobreza caísse abaixo dos 8% até ao final de 2021. No entanto, e para infelicidade de todos nós, dadas as restrições e o fortíssimo impacto que a pandemia provocou, com implicações económicas e sociais diretas de magnitude ainda desconhecida, em especial, ao nível do desemprego, esse cenário não passará, por ora, de um objetivo com concretização adiada. Neste progressivo quadro de agravamento, o Banco Mundial espera, antes, aproximadamente, que mais 100 milhões de pessoas entrem em situação de pobreza extrema e isso, se nada mais houvesse a dizer, é algo com que nos devemos todos preocupar. É, se me permitem, um “cenário de guerra” e de “catástrofe alimentar” de dimensões estratosféricas aquele que se divisa no horizonte, com muitos e muitos “filhos da pandemia” a não disporem do mínimo necessário à sua própria sobrevivência. Se a tudo isto somarmos, em algumas partes do globo, sobretudo em África, no sul asiático e em algumas regiões da América Latina, um segundo confinamento geral, a situação assumirá ainda proporções bem mais alarmantes. Neste particular, diria que o maior desafio que a humanidade terá pela frente será o de pensar e de executar, o quanto antes, uma estratégia eficaz que permita conter os múltiplos danos e as severas consequências que a pandemia irá infligir neste bloco de países mais pobres e mais subnutridos, em que a covid-19 é “apenas” mais uma pandemia a somar a tantas outras de que já são vítimas e de que, como todos bem sabemos, a tuberculose e a malária são tão só os exemplos mais ilustrativos. É por isso que se é verdade que sempre se poderá discutir a natureza, o âmbito e a duração das medidas a adotar pelos diferentes Estados, incluindo aqueles que mais fustigados têm sido pelo maldito vírus, também não será menos verdade que todas essas medidas, invariavelmente, devem procurar, em primeira linha, reduzir o número de infetados e de mortos covid-19. E, sobre isso, não tenhamos ilusões, pois tal imperativo gerará sempre (e disso temos a prova um pouco por toda a Europa), incontornavelmente, uma pesada e duradoura dívida. Não deixa, aliás, de ser preocupante o facto de serem as economias mais prósperas e resilientes as que mais intensamente sofreram os efeitos adversos resultantes da redução de prestação de cuidados médicos a doentes não covid. A título de exemplo, refira-se um recente estudo do serviço nacional de saúde do Reino Unido que estima em 250.000 o número de óbitos causados diretamente pela falta ou atraso de tratamentos médicos. Para além de tudo isto, há ainda que não olvidar as múltiplas e não negligenciáveis sequelas psicológicas e emocionais sofridas por todos e cada um de nós, sobretudo pelos mais vulneráveis, tais como as nossas crianças e os nossos idosos. É, sem dúvida, um desafio gigante que a todos interpela, num mar imenso e agitado de leis e de regulações da mais diversa proveniência que engolem, sem compaixão, os Estados e os seus principais decisores e os impedem de discernir, com lucidez, qual o melhor caminho a seguir. Falta, sobretudo, tempo e razão para pensar e melhor decidir. Um tempo de que infelizmente não dispomos, e cuja falta nos impele, impotentes, para decisões precipitadas, irracionais, ineficientes, de custos bem mais elevados e, sobretudo, que abrem campo a fenómenos menos edificantes como a fraude e a corrupção. As prioridades são, por conseguinte, muito claras. Recordar os mortos, sempre. Tratar os vivos, todos, sem exceção. E cuidar já, atentamente, dos novos pobres que a covid-19 provocou e vai continuar a provocar. Sem esse cuidado, o número de óbitos será, mais à frente, certamente mais impressivo e isso, estou certo, é tudo o que não se deseja.