António João Maia, Expresso online (087 03/09/2020)
Há dias fui (fomos todos) confrontado com notícias da existência de uma espécie de onda de manifestações nas ruas das principais cidades europeias (Paris, Londres, Berlim, entre outras – parece que Portugal escapou um pouco a esta verdadeira “onda de loucura”) contra a utilização de máscaras bem como contra o cumprimento de outras medidas de controlo da disseminação do vírus da Covid-19, com o simples pretexto (este é o argumento indicado pelas notícias) que toda esta circunstância da pandemia esteja a ser utilizada pelos Governos e pelas estruturas de governação dos Estados como uma espécie de subjugação das pessoas à tirania dos poderes, particularmente dos poderes políticos.
Confesso que fiquei boquiaberto com tais notícias e com as imagens que as acompanhavam. Os manifestantes, nalguns casos com dimensão expressiva, de vários milhares de pessoas, gritando palavras de ordem e empunhando cartazes com mensagens fortes, como é habitual nestas coisas, não faltando sequer as habituais cenas de confronto, de pancadaria para ser mais preciso, com as autoridades policiais.
E a minha perplexidade aumentou ao verificar que afinal de contas as imagens mostravam que alguns dos manifestantes continuavam a utilizar as suas próprias mascaras protectoras, num sinal no mínimo contraditório, mas que não deixa de retratar o modo como estes “movimentos reaccionários” são dinamizados, como se arregimentam pessoas para participarem acriticamente na defesa de causas, apenas para fazerem número e ruído, em verdadeiras lógicas de “carneirada”.
Bom, mas não é esta dimensão que hoje nos importa explorar.
A reflexão que o cenário descrito me suscitou prende-se com outra ordem de factores. Prende-se com o interesse colectivo, com a sua importância e com a forma como tem de ser assumido e vivido por todos, para que adquira sentido e seja coerente e para que, com sentido e coerência, alcance a sua importante função na sociedade.
Mas antes de chegarmos lá, façamos uma rápida revisão do que se está a passar.
O contexto de pandemia provocado pelo vírus da Covid-19 veio revolucionar a nossa existência. De repente vimo-nos confrontados com uma espécie de ameaça global que coloca em causa as nossas vidas, provocando insegurança, sofrimento, dor e morte – sim, nunca é demais dizer que este vírus provoca a morte, sobretudo aos mais idosos. E bastará revermos as notícias e as imagens de enorme sofrimento que se viveram aqui na Europa, sobretudo na Itália e em Espanha, e se vivem agora no Brasil, na Índia e nos Estados Unidos, para percebermos que não estamos perante nenhuma “brincadeirinha”, nem “constipaçãozinha”, como alguns “políticos de pacotilha” insistem em defender, nem sequer perante nenhuma “conspiração”, apesar de todo o cenário por vezes se assemelhar a isso.
Neste enquadramento, com o vírus a alastrar rapidamente por todo o mundo, com efeitos e impactos fortíssimos aos mais diversos níveis, como os especialistas têm referido e como vimos anteriormente em a Covid-19 ou o fim do mundo como o conhecemos e em A irreal realidade surreal em que vivemos, é de todo natural assistirmos à tomada de soluções “radicais” pelos governantes de todos os países no sentido de conter tanto quanto possível esta propagação (que na Europa ameaça agravar-se nos próximos meses).
Acredito que a opção por estas soluções não tem sido tomada de ânimo leve por nenhum político, pois desde o início se percebeu que os seus custos iam ser (já estão a ser) muito pesados. Por isso a necessidade de utilização da máscara – para prevenir a disseminação do vírus através das vias respiratórias, porta principal de infecção no corpo humano – e de confinamento das pessoas aos seus redutos familiares, com fortes restrições de circulação pública – para reduzir ao máximo essas mesmas possibilidades de disseminação –, pelo menos enquanto não for encontrada uma solução mais radical para fazer frente ao vírus e que passará pela descoberta de uma vacina (é isso que os cientistas nos dizem).
Apesar de pouco entender de vírus e de virologia, confesso que as explicações que têm sido apresentadas me parecem suficientemente claras para entender a racionalidade e a razoabilidade das medidas adoptadas e da sua necessidade.
Se o vírus se propaga rapidamente entre os humanos, sobretudo através das vias respiratórias, e se provoca a sintomatologia e os efeitos que se conhecem sobre o corpo humano, então, pelo menos até ao momento em que se conheça um antídoto eficaz, o melhor que se poderá fazer é tomar medidas que reduzam os contactos entre os humanos.
Trata-se afinal de uma solução de prevenção de riscos, que parece obviamente clara e adequada, como me parece igualmente clara a necessidade de os governantes terem de “impor” estas medidas como modo de evitar que a sua adopção fique desde logo dependente do livre arbítrio de cada um, do desconhecimento, da incúria, da teimosia, ou mesmo de devaneios ou até de outras motivações pessoais inconfessáveis e mais ocultas, que coloquem irremediavelmente em risco a vida de todos, que possam fazer perigar o supremo interesse colectivo.
É que viver em sociedade é antes de tudo o mais ter a capacidade para perceber que dependemos todos uns dos outros e que a vida em grupo requer responsabilidade, compromisso e confiança.
E que só com a responsabilidade e o compromisso de todos se alcança a confiança, valores fundamentais para enfrentarmos os problemas maiores que este vírus e a pandemia que causou nos estão a deixar à porta.