José António C. Moreira, Expresso online (078 01/07/2020)

1. Anda meio mundo a procurar circunscrever a difusão de “fake news”, para evitar que sejam estratégia para atingir fins menos nobres e possam perverter o jogo democrático. O outro meio mundo, parece ainda não ter despertado para o fenómeno, ingerindo e digerindo alegremente a informação que lhe é apresentada.

Nobre tarefa, sem dúvida, a desse primeiro meio mundo, envolvendo esforço e recursos gigantescos. Porém, pouca ou nenhuma atenção tem sido dedicada a controlar as “fake news” constantes dos relatórios de auditoria financeira às contas das empresas (“certificação legal de contas”), muitos deles preparados e assinados por auditores de nomeada.

Por exemplo, a poucos dias do colapso do Banco Espírito Santo (BES), a empresa de auditoria, que lhe cobrava anualmente milhões de euros pelo trabalho de certificação, escrevia no seu relatório que as contas refletiam de forma “verdadeira e apropriada” a atividade do período, bem como a posição financeira à data do balanço. Uma “fake news”, como todos os contribuintes portugueses hoje, dolorosamente, sabem.

Serão estas “fake news” menos gravosas, em termos das respetivas ondas de choque, do que aquelas que as redes sociais produzem abundantemente? Julga-se que não. A informação financeira das empresas, quando adulterada, determina decisões ineficientes de aplicação dos recursos económicos existentes, e iniquidade por via de redistribuições indesejadas de riqueza que geram.

As últimas semanas foram férteis em notícias relacionadas com o trabalho de auditores. Oportunidade para, em torno de algumas dessas notícias, se efetuar uma breve reflexão sobre a falta de qualidade de muita da informação prestada pelos auditores nos seus relatórios de certificação.

2. A empresa financeira alemã Wirecard saltou para os “noticiários” por ter sido descoberto um “buraco” de cerca de 2 mil milhões de euros nas suas contas anuais. No espaço de duas semanas, uma das empresas-estrela da bolsa de Frankfurt pura e simplesmente “desapareceu”. Ainda se conhece muito pouco sobre o assunto, nomeadamente no que respeita ao “modus operandi” da fraude. O que se sabe aponta para o facto de existirem depósitos bancários registados no respetivo balanço cuja existência o auditor não conseguiu comprovar (“fake deposits”), pelo que se recusou a emitir o parecer de que tudo estava conforme. Neste caso, portanto, não há uma brilhante “fake news” para apoiar a argumentação produzida no início desta crónica. Porém, nem por isso o trabalho do auditor deixa de ser questionável em dois aspetos: por um lado, salvo se esse montante desapareceu do dia para a noite (muito pouco provável, para não dizer impossível), esse mesmo auditor aprovara e supervisionara as contas da empresa de períodos anteriores, prestadas com periodicidade trimestral, contribuindo então, à data, voluntária ou involuntariamente, para a emissão de ”fake news”; por outro, a descoberta da fraude foi despoletada por peças jornalísticas e relatórios produzidos pelo Financial Times, o que não abona em favor da capacidade do auditor para se aperceber do que se passava na empresa e, por inerência, dos seus relatórios de certificação.

3. A nível interno, a Associação Mutualista Montepio (AMM) divulgou as suas contas individuais relativas ao exercício económico de 2019, que apresentam um prejuízo de 409 milhões de euros. Na opinião do Conselho Fiscal da associação, o parecer do auditor é “demolidor”. Na verdade, ele desmonta uma “fake news” que o auditor que o precedeu no cargo vinha anualmente renovando: a de que a situação financeira da associação era sólida e o seu futuro não devia ser motivo de preocupação. Não era, continua a não ser. O valor do Banco Montepio, propriedade da AMM, estava sobreavaliado nas contas desta em cerca de 400 milhões de euros (admitindo que as imparidades registadas perfazem a dita sobreavaliação). Há muito que era opinião geral entre os analistas que tal ativo estava sobreavaliado, mas o auditor (anterior) não divulgou no seu parecer a incorreção dos números daí derivada. Ainda mais grave do que esta situação, que agora reduziu a metade o capital próprio da associação, é a dos impostos diferidos ativos registados no balanço da AMM. Situação que mereceu do (atual) auditor uma “reserva por desacordo”, um parecer grave. Ele refere que os mais de 833 milhões de euros que estes impostos representam no Ativo da associação não apresentam condições de poderem ser recuperados nos próximos anos, pois implicariam que, nesse período, ela tivesse lucros tributáveis da ordem dos 000 milhões de euros (nos últimos anos tem apresentado resultados negativos ou próximos de zero). Portanto, o que acontece com este ativo relativo a impostos diferidos não é muito diferente do que se referiu acima para o caso Wirecard, pois também se trata de um ativo que, em verdade, não existe (um “fake asset”).

Foi neste ano que isso aconteceu? Não, evidentemente. Desde que em 2017 a AMM registou esse montante – com o beneplácito do Ministério do Trabalho, que a tutelava (ainda tutela); do Ministério das Finanças, que deu o seu toque de Midas para que o registo pudesse ser feito; do auditor da altura; e da CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, o organismo que supervisiona os auditores – se sabia que se tratava de uma medida destinada a ofuscar a grave situação financeira da associação. [Em devido tempo, neste mesmo espaço, tive oportunidade de explicar o processo.] De tal modo a situação é complicada que o auditor, no seu parecer, expressa a incerteza que existe quanto à capacidade da AMM poder continuar a sua atividade no futuro em moldes semelhantes aos atuais. Um parecer, portanto, que neutraliza “fake news” que anualmente vinham sendo divulgadas.

4. Entretanto, na sequência das ondas de choque provocadas pelo referido relatório de auditoria, nas páginas da última edição semanal do Expresso, a Presidente da CMVM, na entrevista que concedeu, considerou que o descrito impacto nas contas da associação era o efeito de “um novo olhar sobre a mesma realidade” [Perspetiva bem poética. Não deveria o regulador ter sido, em devido tempo, esse olhar novo, para evitar que a visão distorcida do auditor de serviço perdurasse no tempo?]; e que o facto da associação ver desaparecer de um momento para o outro metade do seu capital próprio não significa que um auditor (o atual) tenha razão e o outro (o substituído) não [Ao considerar que o montante da correção (material) imposta ao balanço da AMM se resume a uma questão de pressupostos atuariais, não se está a alhear da real situação da associação, acrescentando mais um ponto no argumento de que os relatórios de auditoria que certificam as contas das empresas são (em muitos casos) “fake news”?].

Na mesma edição também foi entrevistada a Presidente da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (atual-futura supervisora da atividade da AMM). Referiu que considerava não haver razão para se levar a cabo uma auditoria especial à situação da associação. [Repita-se, no parecer do auditor às contas de 2019 consta a incerteza quanto à capacidade da mesma prosseguir a sua atividade para futuro.] Procurou sossegar as mentes mais preocupadas prometendo um acompanhamento apertado do caso, a partir de informação certificada por um “outro auditor que não o da associação” [Um exemplo concreto da colocação de “um polícia a vigiar um polícia”, mais uma machadada na credibilidade da atuação dos auditores, uma caução ao argumento central desta crónica sobre os relatórios-“fake news”.].

5. Pode haver problemas que a simples passagem do tempo resolva. A existirem, não se devem assemelhar ao das “fake news” nos relatórios de auditoria. Este não vai desaparecer, antes agravar-se. Abstrair da sua existência, com base na ideia de que “informação auditada é sempre mais confiável do que informação não auditada”, é meter a cabeça na areia, esquecendo um problema que tem e vai continuar a ter consequências muito nefastas para o funcionamento das economias. Não haverá, nunca, uma solução fácil e simples para ele. Mas tem de se construir uma.