António João Maia, Expresso online (075 10/06/2020)
10 de junho é o dia que reservamos no calendário para nos celebrarmos.
É o dia da raça, como se defendia no Estado Novo, para alimentar essa espécie de “alma brava” com que se pretendia (e continua a pretender) caraterizar o nosso povo. Ano após ano, continuam a dizer-nos (e eu acredito!), que, como poucos, fomos e continuamos a ser capazes de nos superar heroicamente a nós mesmos, e que essa capacidade é particularmente acentuada nos momentos da mais profunda crise.
É o dia de um povo que, “mais do que prometia a força humana”, como brilhantemente nos legou Camões nos seus “Lusíadas”, se lançou por “mares nunca de antes navegados” e, “em perigos e guerras esforçados”, foi capaz de rasgar horizontes, superar limites e, passando “além da Taprobana”, dar mais mundo ao mundo.
O dia de Portugal é o dia da praça pública se engalanar para receber os discursos políticos que, com palavras que devem ser catalisadoras, de alento e de esperança, anualmente nos apelam e procuram convocar para uma renovação dessa “brava alma lusitana” e para a crença num futuro coletivo mais brilhante e risonho.
E se há momentos em que esse alento utópico urge e é necessário, este ano de 2020 é inequivocamente um deles, pelas razões que todos sobejamente conhecemos e temos vivido.
Desconheço em concreto o que os discursos hoje nos dirão, porque na hora em que escrevo estas palavras ainda não são conhecidos. Porém quase de certeza nos falarão dessa esperança luminosa no futuro, nessa nossa capacidade historicamente registada de sermos resilientes e capazes de lutar contra as maiores adversidades e até de as superarmos. Mas estas mensagens, que são importantes, não o duvidemos, apenas farão sentido se forem coerentemente realistas, se forem alicerçadas nos traços da dura realidade que por aí parece estar a vir e sobretudo se apontarem medidas que façam sentido para a vida das pessoas.
Mas o que verdadeiramente pretendo ver hoje com o estimado leitor não é tanto essa perspetiva de futuro, pois que dela por certo os discursos políticos nos darão conta, mas mais de uma perspetiva do nosso passado que conhecemos menos e da qual nos orgulhamos pouco.
De um passado que, apesar de associado aos nossos sempre tão invocados “feitos históricos”, revela pormenores paralelos de um certo estado de coisas menos edificante, associado à fraude e à corrupção.
Começo por referir, a propósito da dita epopeia dos descobrimentos, George Davidson Winius, em “A Lenda Negra da Índia Portuguesa“ (Edições Antígona, Lisboa, 1994), que nos revela, a partir de um texto de Diogo Couto, cronista oficial da Ásia Portuguesa na segunda metade do séc. XVI, como o estado geral de corrupção na gestão militar e nos negócios da coroa esteve na base da derrocada do Império Português naquela região do mundo.
Das práticas descritas, são de destacar por exemplo o hábito de não se proceder ao abatimento ao efetivo dos nomes dos soldados que morriam, muito simplesmente com o propósito de se manter dessa forma o recebimento (para fins e interesses particulares, claro) dos correspondentes valores de salário.
O livro descreve igualmente e de entre outras práticas de fraude comuns ao tempo, o facto de os Governadores das províncias, que exerciam as funções como Vice-Reis por períodos de três anos, se apossarem dos valores do produto do comércio que, em nome da Coroa, realizavam com os nativos, e, no final da missão, ficarem ainda na posse do mobiliário do palácio onde exerciam funções, deixando-o despido para o seu substituto. Este, por sua vez, e aquando do início de funções, via-se confrontado com a necessidade de adquirir mobiliário novo, fazendo-o naturalmente com valores do orçamento da Coroa.
Enfim um rol de situações em que o património público se tem descaminhado historicamente pelos atalhos dos interesses e das “bolsas” particulares, sempre (sempre!) em natural prejuízo dos mesmos, do povo. Na obra citada anteriormente (agora no canto VIII), Camões alude também a essa dimensão menos heróica da realidade, a essas situações em “que, a troco do metal luzente e louro, entrega aos inimigos a alta torre“, e que “deprava às vezes as ciências, os juízos cegando e as consciências”.
Expediente semelhante ocorria também no Brasil, envolvendo os Governadores e os Altos Funcionários Administrativos, que enriqueciam rapidamente e sem qualquer punição através de todo tipo de subornos associados ao tráfico de escravos e à extração sem qualquer controlo formal de ouro e diamantes, como revela a Professora Adriana Romeiro no livro “Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII” (Edições Autêntica, Belo Horizonte, 2017). A autora conclui ainda que, numa espécie de tradição que se foi sedimentando e enraizando, estas práticas ajudam a compreender, pelo menos em parte, a ação das elites corruptas que têm governado este enorme país sul-americano.
O Padre António Vieira inicia o seu “Sermão de Santo António aos Peixes”, que pregou precisamente no Brasil em 1654, em S. Luís do Maranhão, com estas palavras – “quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa”.
Também no séc. XVIII, as obras de construção da estrutura de abastecimento de água à cidade de Lisboa (o projeto do emblemático Aqueduto das Águas Livres) foram marcadas por diversos episódios de fraude e corrupção na gestão orçamental, nomeadamente no frequente desvio de verbas pelos Tesoureiros e outros contabilistas que delas se apropriavam, conforme é relatado no livro “D. João V e o abastecimento de Água a Lisboa” (Edições da Câmara Municipal de Lisboa, 1990) e no romance “Nove mil passos”, de Pedro Almeida Vieira (Editorial Planeta, 2014).
E, mais recentemente, já no séc. XX, os relatos mais ou menos pormenorizados sobre as formas de enriquecimento ilícito envolvendo militares nos abastecimentos de víveres nas campanhas das ex colónias de África, nos anos 60 e 70, como é descrito por exemplo por João de Melo em “Os Anos da guerra, 1961-1975: os portugueses em África: crónica, ficção e história” (Lisboa, Publicações Dom. Quixote, 1988).
Enfim, são apenas alguns dos muitos exemplos de situações de fraude e corrupção que encontramos a polvilhar a nossa história de heróis e que em regra tendem a ser secundarizadas, por um lado porque têm uma natureza oculta, mas sobretudo para não deslustrar esse imaginário e imaginado “nobre povo” em que orgulhosamente gostamos de nos respaldar.
É que a nobreza de um povo não se constrói só com as tábuas dos feitos históricos. Ela deve estribar-se igualmente na integridade de caráter das pessoas que fazem essa história, e, porque haverá sempre alguém menos íntegro, na capacidade do Estado dispor de sistemas e estruturas de prevenção e punição adequadamente eficazes relativamente a práticas de fraude e corrupção.
O RELATÓRIO recentemente publicado pelo Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa continua a deixar o nosso país relativamente mal colocado no que respeita à adoção e cumprimento das diversas recomendações que nos têm sido apresentadas tendo em vista um controlo mais efetivo e eficaz sobre os fenómenos da fraude e da corrupção.
E este é também um sinal a que temos de atentar quanto ao futuro que aí vem.