Óscar Afonso, Expresso online (074 03/06/2020)
A anormalidade criada pela pandemia da Covid-19 aconselha-nos a refletir sobre a natureza e a eficácia dos sistemas de governo. Não apenas dos sistemas de saúde, mas mais amplamente do governo das sociedades, que associamos frequentemente à necessidade de cumprir certos atributos que incluem conceitos abstratos, como, por exemplo, a necessidade de transparência, de prestação de contas, de promoção da eficiência e da equidade, de controlo da corrupção, de garantir estabilidade conjuntural e do crescimento económico, de inclusividade de todos os cidadãos e de um Estado de Direito.
Nesta forma de entender o governo, um “bom governo”seria o que cumpre esses atributos e tem, por isso, fortes conotações normativas. Deste ponto de vista, podemos ter governos centralizadores / socialistas / comunistas, em que o estado pode (quase) tudo, e governos capitalistas com as funções limitadas às ações acima referidas e que deixam à mão-invisível dos mercados a resolução dos restantes problemas.
Mas devemos também chamar à atenção para a noção de governo como conceito analítico, mais geral, que se refere às regras formais e informais de distribuição de papéis, definição de práticas, estabelecimento de limites e modelagem de comportamentos com o objetivo de alcançar um certo resultado coletivo. Esta definição sugere que um “bom governo” propõe regras e incentivos, tais como ordens, diretrizes ou recomendações executáveis que, direccionando o comportamento dos indivíduos, permitem seguir um rumo propício ao cumprimento dos objetivos coletivos desejados.
Do ponto de vista analítico, no contexto da situação atual, com a pandemia Covid-19, o “bom governo” remeteu para a necessidade de desviar as pessoas de rotinas normais em nome de objetivos de saúde pública. Para muitos dos envolvidos, tal representou a renuncia ao envolvimento nas atividades económicas que os sustentam. Deste ponto de vista, o modelo de governo oscila entre dois extremos. De um lado, existe o modelo de governo de países como a China, que, para lidar com o surto, puderam usar todos os meios possíveis, mesmo que fossem problemáticos do ponto de vista dos direitos humanos. Do outro lado, existe o modelo de governo democrático no mundo ocidental que conciliou o controlo da situação de emergência com os direitos e liberdades democráticas.
Qualquer que seja o ponto de vista considerado, normativo ou analítico, fica claro que as crises, sobretudo as globais, por mais trágicas que sejam, abrem também imensas oportunidades, devendo ser aproveitadas para relevar a necessidade de campanhas decisivas e sustentadas de educação pública e de consciencialização global. Deste modo, há o reconhecimento geral de que muitas das ameaças que enfrentamos são de natureza global e fica claro que a resolução de problemas de natureza global, que atacam todos, independentemente da classe económica, filiação política e raça, exigem respostas coletivas.
Seja, por exemplo, uma pandemia, os efeitos do aquecimento global, a corrupção, ou o racismo, sendo problemas globais revelam a necessidade de comportamentos coletivos para alcançar o objetivo pretendido. A globalidade das crises revela as fraquezas daqueles que tentam resolver problemas globais com estratégias isolacionistas, e a necessidade de exigir decisões baseadas na ciência e na evidência e não em reivindicações ideológicas ou populistas. Por outro lado, a experiência mostra que as crises globais são tanto mais resistentes quanto menor for a valorização do bem comum. Por conseguinte, a saída para problemas globais passa pela empatia e solidariedade entre governos e pessoas, o que requer a valorização do bem comum por todos.
No contexto atual, as escolhas que os governos estão a fazer para reiniciar a atividade económica, através de estímulos económicos, são sinais ou não para construir uma sociedade melhor. Há muitos fatores imediatos que os governos devem, naturalmente, pesar na elaboração do “pacote de estímulo”. Desde logo, devem atender às necessidades imediatas da população, à reposição da capacidade institucional, às condições de mercado e à capacidade de endividamento. Mas sendo a crise global, as medidas deveriam ser mais ou menos semelhantes, coordenadas entre os distintos países, de modo a construir uma sociedade globalmente melhor.
No curto prazo, há pois a necessidade de gerar o maior número de empregos, assegurar rendimento e procura económica, havendo três assim considerações principais a atender: (i) criação de empregos, olhando para o número de empregos criados por euro investido, mas também as categorias de empregos criados e quem beneficia deles, devendo as qualificações corresponderem às necessidades dos empregos; (ii) impulso à atividade económica, com foco no multiplicador económico que cada intervenção pode proporcionar na capacidade de satisfazer procura existente e de, sustentadamente, substituir importações; (iii) oportunidade e risco, avaliando se a atividade apoiada gera estímulo e benefícios de emprego a muito curto prazo e se esses empregos são duráveis.
Os governos devem naturalmente atender também à sustentabilidade, incluindo nos estímulos económicos critérios de longo prazo. Neste caso, terão de valorizar a taxa de natalidade, a descarbonização, a resiliência duradoura, a capacidade adaptativa, e o impacto na tecnologia, e no capital físico e humano. No longo prazo, os apoios devem, pois, beneficiar o país em três dimensões diferentes.
Em primeiro lugar, os apoios devem ter potencial de crescimento a longo prazo, considerando o impacto sobre a taxa de natalidade, o capital físico e o capital humano. Por exemplo, alguns investimentos promovem mais intensamente a melhoria do capital humano, construindo competências cruciais no futuro e melhoram a saúde da população, especialmente se a poluição do ar e da água puder ser reduzida, ou se o acesso à água potável for melhorado. Neste contexto, o investimento em medidas de apoio à natalidade, à educação e à I&D são fundamentais, como é fundamental a aposta em instituições inclusivas que favoreçam o esforço e o mérito. Outros apoios podem promover o uso de tecnologias mais eficientes, fornecer bens públicos importantes, como energia moderna ou saneamento, ou ainda corrigir falhas de mercado.
Em segundo lugar, as atividades apoiadas devem ser resilientes a choques futuros, com intervenções construtoras de capacidade para enfrentar mais favoravelmente choques externos, como a Covid-19, mas também outras formas de desastres naturais e eventuais impactos futuros associados às mudanças climáticas. Neste contexto, são desde logo requeridos investimentos nos serviços de saúde, mas também na conservação, reparação e melhoria do parque habitacional e de outras infraestruturas.
Por fim, as atividades apoiadas devem contribuir para a descarbonização e para o crescimento sustentável, com ações de apoio e disseminação de tecnologias verdes, como investimentos em redes que facilitam o uso de energia renovável e veículos elétricos, ou opções de baixa tecnologia como arborização, restauração e gestão de paisagens e de bacias hidrográficas. A aposta em tecnologias limpas é pois prioritária. Será particularmente importante garantir que novos investimentos não imponham grandes riscos. Assim, não deverá apostar-se em tecnologias em declínio ou em projetos em zonas de alto risco de inundação.
Acredito que os formuladores de políticas têm muito em que pensar neste momento, e que os planos de recuperação económica não podem avançar mais rapidamente do que os esforços para enfrentar a crise de saúde. Mas, à medida que os governos mudam o foco para a recuperação económica, as escolhas que os países fazem definirão como será o amanhã e se futuramente estaremos mais preparados de gerir crises globais.