Mário Tavares da Silva, Expresso online (073 28/05/2020)
Depois de algum tempo de “reclusão”, ousamos novamente, passo a passo, desafiar a liberdade e respirar o ar que tanta falta nos faz, sequestrados que estivemos tanto tempo entre quatro paredes a preencher o dia-a-dia entre um écran de computador e uma mesa de refeições. O metro, outrora sempre apinhado, transporta já, em hora de ponta, uma dúzia de pessoas por carruagem….
Não é muito, é certo, mas é sinal que a vida, paulatinamente, quer retomar a sua normalidade.
Como em tudo, há sempre uns mais otimistas que outros, ou pelo menos mais temerários que outros. A verdade é que mesmo estes assomos de liberdade que alguns, aqui e ali, vão já arrojadamente experimentando, não nos devem fazer esquecer, em circunstância alguma, as terríveis consequências que o quadro pandémico provocou e que, no médio e longo prazos, irá continuar a provocar, com especial incidência na economia das pessoas e das empresas.
Todos sabemos que os últimos tempos foram muito difíceis e que o futuro próximo, que está já aí, não será diferente. A legislação de emergência com que os diferentes países se municiaram para responder à crise sanitária decorrente da COVID 19 assume, inegavelmente, uma geometria variável, privilegiando mais umas áreas em detrimento de outras, o que aliás se compreende, dado que o impacto sentido em cada um deles foi também diferenciado, sobretudo no que toca ao trágico indicador do número de óbitos como consequência direta da pandemia.
Apesar dessa diferenciação, há um elemento comum a todas as «legislações de emergência». É que todas elas foram aprovadas num autêntico contra-relógio, sem preparação ou qualquer esquisso de planeamento, em ambiente de elevada incerteza e de desconhecimento sobre qual a natureza e dimensão do problema e, sobretudo, da sua capacidade de progressão e agudização no tempo.
Os “laboratórios” em que por esse mundo fora a legislação de emergência foi sendo criada, privilegiaram mais a necessidade de oferecer uma resposta rápida às graves consequências trazidas pela pandemia, do que propriamente em salvaguardar as questões relativas à regularidade, transparência e, em especial, ao controlo das diferentes medidas e planos de ação políticos, entretanto aprovados.
Toda essa impreparação e falta de planeamento da legislação emergencial aprovada e publicada pelos diferentes países a braços com o novo coronavírus foi, objetivamente, em larga medida, motivada pelo fator surpresa associado ao evento pandémico e na consequente falta de tempo dos decisores públicos para ponderar as soluções mais acertadas, sobretudo ao nível da eficácia e do value-for-money das diferentes medidas engendradas.
Ora todo esse quadro, generoso nos seus propósitos, terá necessariamente um preço.
Um elevado preço, refira-se, para todos nós.
É que como é expetável, legislações emergenciais opacas, confusas e por vezes antinómicas, geram dúvidas angustiantes em quem tem que as aplicar, potenciando o aparecimento de pesados procedimentos decisórios, com inegável prejuízo final para os destinatários das medidas, ou seja, para todos aqueles que era suposto serem os seus diretos beneficiários.
Toda essa opacidade e complexidade em que as legislações de emergência se irão desenvolver fez emergir o ecossistema perfeito para a ocorrência de fenómenos de fraude e de corrupção.
É, por conseguinte, vital que todos percebamos que a legislação da emergência, sendo de “urgência”, não gravita fora do quadro da lei. Pelo contrário, a sua natureza e o seu fundamento último radica na própria lei, que ela serve e que por ela é servida.
Perante este cenário, é importante que os diferentes governos e decisores (públicos e privados) espalhados por esse mundo fora, reinventem, reajustem e, sobretudo, reforcem os seus sistemas de controlo relativamente à aplicação da legislação de emergência. Impõe-se, complementarmente, um reforço da sensibilização ética dos diferentes stakeholders na concretização da mesma, procurando interpretar e aplicar da forma mais adequada que lhes seja possível, a letra e o espirito do legislador emergencial.
É que, sejamos claros, a uma legislação de emergência deve responder-se com uma «ética de emergência».
A não ser assim, o preço, já alto refira-se, será ainda muito maior.