José António Moreira, Jornal i
Se a procura por parte de estrangeiros dos bens e serviços produzidos em Portugal se reduziu, seria desejável que uma parte dessa procura fosse assegurada pelas famílias portuguesas.
O caso Wirecard quase não tem merecido atenção nos meios de comunicação nacionais. Dada a dimensão desta fraude, que levou ao colapso, quase do dia para a noite, da empresa financeira do mesmo nome, estrela da bolsa de Frankfurt, justificava-se maior atenção, pelas lições que dele se poderiam retirar. Esse silêncio deixa sem questionamento o papel dos auditores no acompanhamento da atividade da empresa e, de modo particular, na certificação da qualidade da respetiva informação financeira; e o papel do conselho de administração que, pesem os códigos de “governance” que ao longo das duas últimas décadas foram sendo aplicados, pareceu funcionar como mero grupo de pessoas que, mais ou menos bem remuneradas, existe para cumprir uma obrigação legal e ou estatutária.
Pode encontrar-se justificação para tal alheamento, pelo menos em parte, no período especial que se vive no país, em que ao “sucesso português” no combate à pandemia se seguiu, e está em curso, a incapacidade para fazer decrescer a curva de infetados e o que daí resulta em termos de internados e mortos. Situação muito complicada.
O cidadão olha à volta e tudo parece normal, excetuando as máscaras. Mas não está. Longe disso. Os sinais do “tsunami” que se aproxima começam a ser por demais evidentes, mesmo para os mais distraídos. Dois exemplos: as reações quase histéricas do Presidente da República e do Ministro dos Negócios Estrangeiros à decisão da Inglaterra de colocar Portugal na “lista negra” dos destinospara cidadãos ingleses; a entrevista a um jornal dada pelo vice-governador do Banco de Portugal, em que diz temer que as famílias estejam a poupar em demasia e fala do perigo de se vir a defrontar o “paradoxo da poupança”.
Pese o seu tom suave, esta entrevista é, nas entrelinhas, mais um grito de alerta para o que aí vem. Se nas últimas décadas Portugal se caraterizou por ter uma das taxas de poupança mais baixas do mundo, agora o receio das famílias quanto ao futuro leva-as a reduzir o consumo e a aforrar maior proporção do respetivo rendimento. O que num passado recente teria sido benéfico, é agora um comportamento indesejado. Se a procura por parte de estrangeiros dos bens e serviços produzidos em Portugal se reduziu, e muito – pense-se, por exemplo, nas multidões de turistas que deixaram de visitar o país –, seria desejável que uma parte dessa procura fosse assegurada pelas famílias portuguesas, o que implicaria que, no mínimo, mantivessem o padrão de consumo anterior. Se os sinais atuais vão no sentido contrário, a retração do consumo é “deitar gasolina no fogo”. No limite, poderá vir a defrontar-se o denominado “paradoxo da poupança”, quando o nível desta condicionar o escoamento da produção nacional, levando a que as empresas não gerem rendimento para distribuir sob a forma de salários, criando um círculo vicioso, em que menos rendimento distribuído é sintoma de mais desemprego, de menor nível de consumo, de mais receio quanto ao futuro por parte das famílias, de aumento da poupança …
Ouve-se por vezes dizer que a situação que estamos a viver e o desastre económico (e social) que já se vislumbra no horizonte é um “problema deles” (os governantes). Nada mais errado. É um problema de todos e de cada um. E os comportamentos individuais afetam, necessariamente, o presente e o futuro do país. Seja quando alguém toma decisões (inoportunas) de consumo e afetação do rendimento; seja quando descura as regras básicas de higiene e de distanciamento. Está nas mãos de cada um escolher ser parte do problema ou parte da solução.