António João Maia, Expresso online (069 29/04/2020)

Tudo isto é surreal! Não consigo ver outra forma de sentir nem de caracterizar o contexto em que nos encontramos.

Se alguém nos dissesse há meio ano que fosse, ou nem tanto, que agora estaríamos todos (literalmente todos! sim, todos no mundo inteiro!) fechados em casa, numa espécie de penitência, como se o mundo se tivesse transformado numa gigantesca penitenciária, sem portas de entrada nem de saída, apenas janelas e postigos electrónicos através dos quais poderíamos dizer olá e acenar breves adeus uns aos outros, num estado geral de “prisão condicionada”, e tudo por causa de um vírus que havia de vir, não se sabe muito bem de onde nem a que propósito, mas que, num repente, zás, empurraria todos para casa a trancarem-se a sete chaves, só nos poderíamos rir. Sim, rir e a gargalhadas profundas, dado o irreal absurdo da cena.

Por acaso ainda se conseguem lembrar de como era a vossa vida há seis meses? Por exemplo, dos projectos de férias que traçaram ou dos desejos com que acompanharam cada uma das doze passas na passagem de ano? Pois é, que recordações longínquas, que projectos esfumados, vistos agora daqui… E passaram apenas nem quatro meses. Onde estávamos e ao que chegámos… E onde chegaremos?

O mais provável seria que, por entre as gargalhadas, perguntássemos a quem nos tivesse dado essa nova, a quem tivesse esse poder de ver o futuro, se a sua bola de cristal se tinha avariado ou então se estava a precisar de mudar as pilhas, e depois seguiríamos tranquilamente o nosso caminho, na procura de concretizar todos esses planos sonhados. Todos esses planos a que chamamos liberdade e individualidade. A que chamamos vida.

Mas, agora aqui confinados neste contexto de realidade irreal, aposto eu, com a certezinha de ganhar, já tínhamos ido todos a correr para esse visionário, se ele tivesse existido, a procurar saber o que diria agora a sua bola sobre o futuro…

Estamos mergulhados numa espécie de filme, que ainda não consegui perceber se é cómico ou dramático, ou se de ficção científica, esperando que não seja de horror, embora por vezes algumas cenas apresentem um recorte próximo deste estilo, com a agravante de serem reais.

Também ainda não percebi, e acho que ninguém conseguiu perceber igualmente, em que parte do filme é que vamos. Se estamos ainda nas cenas iniciais, que muito sinceramente é o que me parece (a avaliar pelos especialistas destas coisas da virologia), se estamos algures pelo meio do enredo, ou se de algum modo nos abeiramos do desenlace. Mas de uma coisa não tenho dúvidas, esta película é a preto-e-branco!

Neste filme, em que não há atores secundários nem figurantes, mas apenas atores principais, todos temos de continuar o desempenhar os nossos papéis, a fazer de nós próprios, de modo a evitarmos uma propagação mais nefasta do vírus e, aí sim, a levarmos todo o enredo para o terror.

Creio que, como em todos os filmes, mesmo aqueles que são verdadeiramente surreais, mais cedo ou mais tarde havemos de chegar a uma cena final, ao “The end”, como nos filmes americanos do imaginário da nossa infância, e que então todas estas cenas por que estamos a passar hão-de permitir perceber a sua própria coerência e o seu sentido, e hão-de sobretudo permitir perceber que a vida vai continuar, ainda que com mudanças mais ou menos profundas relativamente à que conhecíamos até há pouco tempo.

Algumas dessas mudanças já se antevêem complicadas, sobretudo as que se relacionam com as componentes económica e financeira, que, quer queiramos, quer não, quer gostemos mais ou menos, são sempre muito centrais e estruturantes das nossas existências.

Outras possíveis mudanças, considero, seriam muito bem-vindas, nomeadamente todas as que permitissem a redução da pegada ecológica. Mas, reconhecendo assumir algum pessimismo, creio que não virão a ser dados grandes passos neste sentido, perdendo-se porventura uma oportunidade impar para procurarmos, colectivamente, alterar algumas componentes do nosso estilo e dos nossos padrões de vida, nomeadamente dos que causam ou estão associados a impactos de elevado desgaste sobre o planeta e os seus recursos. Simplesmente a pressão dos interesses económicos instalados, aliada a uma certa habituação a que estamos formatados, que agora se encontram circunstancialmente suspensos, deixam muito pouco espaço para grandes mudanças nos estilos de vida e padrões de consumo que lhes estão associados.

Mas neste filme, abeiramo-nos de uma cena que promete algum “suspense“ intercalado com um ou outro momento cómico, e que se prende com o modo como se pretende fazer o necessário controlo sanitário da frequência das praias no verão. Estaremos confinados a ir à praia com senhas numeradas? Com uma espécie de passes balneares? Com controlo policial? Só em determinados dias e horas para cada um e em função de um qualquer critério, como por exemplo o mês de nascimento?

Cá estaremos para ver, apreciar e sobretudo participar em mais esta cena do enredo deste filme nunca antes visto.

A finalizar, referir que, afinal de contas, todo este contexto não deixa de traduzir, ainda que de uma forma mais radical, a essência e a natureza da própria vida.

A vida é um desafio em permanência, que nos coloca perante obstáculos mais ou menos complexos relativamente aos quais sempre tivemos a audácia, a capacidade, a determinação e a coragem necessárias para, com maior ou menor esforço, superar e seguir em frente. Por certo agora não será diferente!