Mário Tavares da Silva, Expresso online (067 15/04/2020)
A tradicional mensagem de Páscoa e a bênção Urbi et Orbicom que o Papa Francisco se dirigiu ao mundo dos fiéis no passado domingo de Ressurreição, impele-nos, definitivamente, para uma profunda reflexão interior sobre aforma como deveremos responder ao atual contexto pandémico trazido pela COVID 19. De forma magistral e reveladora de uma inigualável grandeza moral, a mensagem, carregada como sempre, de forte e rico simbolismo, propõe um contágio diferente daquele com que o maldito vírus nos tem assolado, capaz pois de se manifestar de coração a coração e, por essa via, melhorar a condição humana de todos e de cada um de nós.
É, como aliás se refere maravilhosamente na mensagem, o contágio da esperança, da vitória do amor entre os homens sobre a raiz do mal e, sobretudo, a emergência de uma nova forma de vivenciar os afetos. Nesse plano são, aliás, múltiplos e exigentes os desafios que se desvelam no horizonte e colocam todos, sem exceção, em alerta vermelho. É um tempo difícil este que vivemos, em que para muitos o futuro é tanto ou mais incerto quanto o é a janela temporal em que ainda viveremos sequestrados pelo bicharoco.
É preciso não desmobilizar porque se é certo que o contágio da esperança se preenche com amor, também não podemos negar que o amor a que apela o Santo Papa na sua mensagem pascal será, sobretudo, o resultado do que hoje formos capazes de fazer pelos outros, em especial os mais vulneráveis.
Cobra aqui decisiva importância aquilo que a classe política, os cidadãos em geral, as instituições públicas nacionais e europeias, os agentes económicos, os cooperadores do setor social e toda uma vasta plêiade de “atores” que me dispenso de enumerar, forem capazes de fazer (sobretudo o tempo e a forma como o farão), assumindo que as decisões e ações que possam vir a ser desenvolvidas possam ter tanto mais impacto, quanto formos capazes de perceber, todos, desde muito cedo desejavelmente, o quão importante se revela a mudança dos mais banais comportamentos, no quadro da normal convivência social.
No plano da administração pública, por exemplo, setor que bem conheço por defeito profissional, será também um tempo de reflexão capaz de impelir gradativamente, mas sem rotura, os atores das principais instituições a reinventarem os seus modelos de atuação e de relacionamento com os seus “clientes”, sem que isso, em circunstância alguma, possa fazer perigar a sua missão original.
Os mandatos e cartas de missão de muitos dos servidores públicos de topo da nossa administração deverão, também, ser eles próprios, objeto de uma cuidada reflexão, integrada se possível, sobre quais os verdadeiros impactos (diretos e indiretos) que o quadro de emergência irradia (e continuará a irradiar) nos conteúdos e opções vertidos nos diferentes planos de atividades e, sobretudo, na forma de exercício dessas mesmas atividades.
É que mais uma vez a história irá repetir-se, qual luta do bem contra o mal a que o Santo Papa também se refere quando fala na vitória do amor sobre a raiz do mal…
Aparecerão, inevitavelmente, os saqueadores da praxe que, contrariamente ao cidadão comum, despertaram bem mais cedo para engendrar criminosamente a melhor forma de explorar os “buracos” que a urgência de uma pronta resposta à emergência deixou invariavelmente abertos e que eles, tão bem, não hesitarão em aproveitar até ao último cêntimo.
Os procedimentos de contratação pública, sobretudo os relativos a material e consumíveis hospitalares, absolutamente necessários para o combate à pandemia, a exploração do medo dos mais vulneráveis com o advento de diagnósticos cotonete, que de diagnóstico só tem mesmo o cotonete (e quando tem), a concessão de apoios económicos a quem deles não precisa (em detrimento de outros tantos que, deles precisando, provavelmente deles nunca beneficiarão) e, ainda, todos os outros esquemas de fraude que, perpetráveis online, explorarão a maior vulnerabilidade decorrente do confinamento a que todos estamos votados.
Serve isto apenas para dizer que a capacidade de resposta que possamos ter para responder a todos os que mais precisam e que em maior situação de vulnerabilidade se encontram, irá exigir, da parte de todos, sobretudo das instituições públicas, uma maior atenção no processo de gestão, acompanhamento e controlo de dinheiros públicos.
É que para mim, o contágio da esperança só se dará em larga escala, se formos realmente capazes, como resulta implícito da mensagem pascal, de dar esperança a todos aqueles que agora, verdadeiramente, de nós mais precisam e a que não podemos, em circunstância alguma, deixar de dizer «Presente!»
Estou aliás certo que se soubermos, na sua mais elementar pureza, interpretar e por em prática as palavras do Santo Papa, alcançaremos, no final do dia, não uma «imunidade de grupo», que tantos e tantas defenderam e que também tantas vidas cercearia se fosse posta em prática, mas sim uma verdadeira e genuína «imunidade da esperança».