António João Maia, Jornal i

Não há nada melhor para um defraudador de que uma boa oportunidade!

As teorias criminológicas explicativas da fraude e da corrupção são claras ao verificarem que os contextos em que os atos desta natureza têm lugar decorrem da presença simultânea de dois grandes fatores. Um de natureza objetiva, a Oportunidade, e outro de natureza subjetiva, o Índice de Integridade e de Motivação do agente – o defraudador – para alcançar esse propósito.
As mesmas teorias dizem-nos também, como vimos em reflexões anteriores (ver Contextos e determinantes da corrupção - a educação como factor preventivo e Prevenir a corrupção nas organizações públicas - a estratégia dos 5 vértices), que apesar de os dois fatores estarem sempre presentes, são as componentes de ordem subjetiva que verdadeiramente impulsionam as opções por estas práticas.
Do ponto de vista do defraudador, a fraude e a corrupção são uma espécie de jogos em que participa com um único propósito. Ganhar sempre e o mais possível!
E, tal como noutro jogo qualquer, ajusta a sua estratégia em função do contexto próprio de cada jogada, analisando e explorando cautelosa e friamente as oportunidades de êxito que elas lhe oferecem. Não há nada melhor para um defraudador do que uma boa oportunidade!
O contexto de pandemia gerado pela Covid-19, sobretudo as medidas reativas que têm sido adotadas para lhe fazer frente, tem sido também uma grande oportunidade para o aparecimento dos fenómenos da fraude e da corrupção.
Todos nos recordamos como nas primeiras semanas se verificou uma falta generalizada de máscaras, de produtos de desinfeção e de ventiladores nos serviços prestadores de cuidados de saúde, e também nas lojas, e de, em resultado do desequilíbrio repentino entre a oferta e a procura desses bens, como esse contexto foi de imediato explorado por alguns operadores de mercado como uma oportunidade para incrementarem de forma rápida e fraudulenta os lucros com a venda de tais produtos.
Estas “jogadas” são também designadas por “oportunismos”, sendo os seus autores os “oportunistas”, usando-se igualmente entre nós, numa terminologia mais popular, o “chico-espertismo”, para a ação, e o “chico-esperto”, para aquele que a pratica.
Por outro lado e porque os Estados se viram confrontados com a necessidade de adotar medidas restritivas dos contactos sociais, a fim de reduzir o risco de contágio, o processo de confinamento e os efeitos que ele tem provocado tornaram-se também objeto de fortes e necessários apoios financeiros. Estes apoios têm procurado assegurar fundamentalmente:
- A garantia e o reforço da prestação de cuidados de saúde, através do (1) internamento e tratamento dos doentes infetados, e; (2) do controlo e prevenção da propagação do surto infeccioso;
- A existência de apoios sociais ao emprego, às famílias e às empresas, devido sobretudo às situações de “layoff”, e;
- A necessidade de apoiar a retoma da economia, com particular incidência nos setores que ficaram mais afetados com a crise.
Não se questiona, nem se pode questionar, a necessidade e utilidade destes apoios! São momentos como este que nos mostram a importância do Estado e a necessidade da existência de estruturas que façam a sua gestão em função dos nossos interesses coletivos! Se dúvidas existissem sobre a importância do Estado, experiências como esta são suficientemente fortes para as desfazer.
Mas, claro, todas estas medidas têm custos financeiros que têm de ser pagos! E esta dimensão do problema também me parece que não ofereça dúvidas. A questão, e é neste ponto que me quero focar um pouco mais, é que o processo de “pagamento” da fatura oferece em si mesmo grandes oportunidades para o jogo da fraude e da corrupção.
Para ajudar os Estados-membros a enfrentar e superar os impactos económicos e financeiros destas medidas, a Comissão Europeia confirmou por estes dias o lançamento de um plano de recuperação de 750.000 Milhões de €uros para a economia e os Estados da zona euro.
Este “Fundo de Recuperação dos Países da União Europeia” é a “bazuca” financeira, uma espécie de bóia de salvação, que todos ansiavam e quase todos têm vindo a reclamar. Claro que ainda falta conhecer o plano mais concreto sobre a sua concretização, nomeadamente como vai ser financiado e distribuído pelos vários países, que tipologia de políticas e programas vão ser apoiados em cada Estado e de que modo vai ser feita a sua gestão. A imprensa refere que neste quadro Portugal poderá vir a beneficiar de um valor global de apoio de 26.500 Milhões de €uros.
Trata-se sem dúvida de um enorme montante de dinheiro! E, por isso, trata-se de mais uma excelente oportunidade para o jogo da fraude e da corrupção. E, não tenhamos dúvidas nem ilusões, até porque a história está aí para o demonstrar (vejam-se por exemplo relatórios do OLAF - Organismo de Luta Anti-Fraude da Comissão Europeia , do Tribunal de Contas Europeu, ou da OCDE), os defraudadores estão já, por certo, de olhos arregalados e a esfregar as mãos, na expectativa de conhecer e explorar muito bem esse quadro de oportunidades, esse “bolo” que se anuncia. É da sua natureza!
Neste âmbito e para que o dinheiro que tiver de se perder por essas “jogadas ínvias” seja o menos possível (como a história também sempre demonstrou, há que ser realista e perceber que é pura utopia pretender concretizar um processo desta natureza, com esta configuração e sobretudo com esta dimensão financeira, com uma taxa zero de fraude e corrupção) importa que a instâncias europeias, em articulação com os organismos nacionais em cada Estado-membro, estabeleçam adequados sistemas de controlo e prevenção de riscos relativamente a todas (todas!) as fases do processo. De modo complementar, importará também que as situações detetadas e comprovadas sejam objeto de punições efetivas, aplicadas dentro de um intervalo de tempo coerente, que não relativize nem prejudique o “sentimento de justiça”.
A gestão de todo o processo de distribuição, atribuição e concessão destes fundos e dos correspondentes mecanismos de controlo e prevenção de riscos deve incluir pressupostos de cuidado tão importantes como: transparência; rigor; obetividade; isenção de todos os intervenientes do setor público; simplicidade; clareza; estabelecimento prévio de critérios gerais e abstratos, existência de medidas concretas e efetivas de controlo e prevenção de conflitos de interesses e de riscos de fraude e corrupção; realização aleatória de auditorias e inspeções, e; no âmbito punitivo, a realização atempada dos procedimentos criminais a que haja lugar e, nos casos de existência de elementos probatórios, dos correspondentes julgamentos.
É que afinal de contas e bem vistas as coisas esta é também uma função de grande importância que carateriza ao Estado! O interesse coletivo também tem de ser aqui alcançado na sua plenitude! Ações eficazes neste âmbito conferem sentido e consolidam a credibilidade e o prestígio do Estado, das suas estruturas e, em última instância, da própria sociedade.
E os cidadãos necessitam tanto desses sinais para reforçar a confiança social!