Óscar Afonso, Dinheiro Vivo (JN / DN)
Caminhamos perigosamente para uma sociedade de vigilância, que mantém as pessoas sob controlo. ... E, em Portugal, começa a haver tiques deste cenário.
Na obra “1984”, George Orwell vislumbrou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes, desde valores humanistas, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão e cultura foi abolido e esquecido. A nova sociedade que o romance descreve está dividida, mais ou menos como agora, em três classes: “membros do partido”, “proles” e “escravos”. O aparelho de repressão, omnipotente e implacável, monitoriza cada movimento dos súbditos. Sem privacidade, o poder é encarnado por um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o ‘slogan’ “O Grande Irmão vigia-te”, impondo assim o domínio do medo. A tensão entre o poder esmagador, por um lado, e o amor e a liberdade, por outro, é o cerne desta seminal obra “1984”.
Aquilo que poderia parecer ficção científica política parece estar a manifestar-se em boa parte dos países caracterizados por instituições extrativas – aqueles em que a elite (ou “membros do partido”) vive da riqueza criada pelo resto da população (ou “escravos”). Reconhecendo em tais países traços do mundo que Orwell tão bem descreveu, a obra “1984” permanece profundamente atual e perturbadora. Afinal, nesses países, nada é mentira nem erro, porque, conforme vai dando jeito, muda o significado das palavras que passam então a descrever “factos alternativos”. Reduz-se a capacidade de pensar de cada um de nós e vigora a institucionalização da mentira e do medo presentes, em maior ou menor grau, nos discursos políticos.
Ora, à custa da Covid-19, à medida que o autoritarismo do confinamento avança, que restrições incompreensíveis se propagam e vamos sacrificando direitos, também renunciamos à nossa capacidade de pensar e a um mundo livre. Efectivamente, a liberdade não é a ordem “natural” das coisas. Na maioria dos lugares e na maioria das vezes, os fortes dominam os fracos e a liberdade humana é anulada pela força ou pelos costumes e normas. Quando assim é, reforça-se o poder dos fortes e quanto mais se enraíza mais se estabelece uma hierarquia difícil de mudar e, claro, mais se enfraquece a sociedade.
Até há pouco tempo pensaríamos que os Estados eram fracos e que esse mundo de Orwell nunca, no novo milénio, poderia existir. A verdade é que a história se repete. Como no inferno descrito Orwell, teme-se hoje que a miséria dos pobres e o tédio dos outros possa ser o espelho da nova realidade, que as pessoas andem de cabeça baixa e atrofiadas e que a aparência das coisas passe a ser bem cinzenta. Espera-se, enfim, um crescendo de pressões económicas, de ansiedade, de uso generalizado de antidepressivos, de falta de sono, de obesidade, de recurso à televisão, de uso de telemóveis e de PCs, de excesso de informação, vivência num mundo virtual que entretém e anestesia, e de fragilidade psicológica.
Caminhamos perigosamente para uma sociedade de vigilância, que mantém as pessoas sob controlo. Os recursos permitidos pelo monopólio todo-poderoso da tecnologia, a necessidade de controlo da verdade e o anseio por informações, podem, de facto, ser um substituto plausível desse fatídico Estado fictício de Orwell. E, em Portugal, começa a haver tiques deste cenário. Entre tanta coisa, recordemos a este propósito a excepção à permissão de actos de cariz políticos, o apoio estatal aos órgãos de comunicação social (quem, recebendo uma dádiva “divina”, permanece integralmente livre?!), as redes sociais onde “membros do partido” se encarregam de distribuir informação desejada e lincham virtualmente quem ouse ser do contra, ou até o surrealismo que se antevê para a frequência das praias neste verão de 2020.
A este propósito, por tudo o que se vai lendo e vendo (até à hora em que escrevo—17 de maio), com jeitinho e sorte, porque a tecnologia é a regra e tudo está devidamente organizado – segundo o nosso Presidente, até somos os melhores do mundo! –, receberemos um email algures entre julho e setembro a dar conta que finalmente na segunda-feira seguinte teremos direito a meia hora diária, por uma semana, no areal da praia X, no sector Y, na fila Z e no lugar W. Será esse email que nos dará também conta da necessidade de porte do resultado negativo ao teste à Covid-19 no dia anterior, do uso de máscara, de viseira, das novas toalhas de praia e do álcool-gel. O email será ainda certamente aproveitado para indicação do drone que nos conduzirá no areal e para outras informações repressivas relevantes. Com sorte, conseguiremos a meia hora diária em horário “fixe”, junto ao mar, sem acrílico à nossa frente e, fazendo mesmo muita fé na sorte, o nosso lugar de estacionamento não exigirá o recurso a transportes públicos para fazer o transbordo até à dita praia X, que nos calhou em sorte.
Por este andar, não é certo que a praia, a semana e as horas sejam as mesmas para todas as pessoas de um grupo ou família, mas, nós, os portugueses, arranjaremos forma de contornar o problema com um sistema de trocas em mercado secundário. Nesta arquitectura de opressão, vamos lá ver se estas transacções informais em mercado secundário ficam isentas de IVA. Seja como for, muito dificilmente ficaremos todos juntos na praia X. Mas também não nos podemos queixar se, com trocas, podermos ir todos no mesmo horário. Além disso, enquanto houver dados móveis, mesmo na praia X, sempre nos podemos ver por skype, google meet, teams ou zoom.
Há quem pense que a nossa liberdade não está ameaçada, que está tudo bem ou vai ficar bem, que essa admirável semana numa praia, que é de todos, já é muito bom! Na verdade, porém, a liberdade surge quando um determinado equilíbrio entre o Estado e a sociedade é alcançado e, recorrendo a palavras de Acemoglu e Robinson, em The Narrow Corridor: States, Societies, and the Fate of Liberty, o corredor para a liberdade tem-se vindo a tornar cada vez mais estreito e traiçoeiro.