José António Moreira, Expresso online (066 08/04/2020)

O desconforto que sinto é difícil de explicar, é mais uma sensação difusa. Não é totalmente explicado pela clausura forçada em que me encontro, em teletrabalho, pois já antes da atual crise uma parte da minha semana reproduzia o que agora faço a semana inteira. O que sei é que esse desconforto se alimenta com o ambiente geral que se vive, com o medo difuso que ressoa no silêncio das ruas vazias, da auto estrada sem viaturas que vislumbro da minha janela.

Procuro mitigá-lo como posso. Fujo à repetição “ad nauseam” das estatísticas de infetados e vítimas mortais, que diariamente preenche grande parte dos espaços informativos nos canais e programas noticiosos dos “mass media”, procurando nos canais de cabo, quando tenho disponibilidade, um ou outro programa que me possa ocupar a mente com assunto diverso. Não fique o leitor com a ideia de que me fecho à realidade do que se passa à minha volta. Não é isso, obviamente. Procuro manter-me ao corrente do que vai acontecendo, não só internamente, mas também nos diversos cantos do planeta, em particular onde tenho amigos e colegas. O que me leva a fugir dos referidos espaços informativos é o sentir que essa repetição dos números pelos números contribui para que me torne mais insensível aos dramas humanos que lhes estão subjacentes.

Contribuindo para agravar esse risco de crescente insensibilidade, os espaços de opinião nos “mass media”, salvo honrosas exceções, espelham um ambiente que se aproxima mais do das lides futebolísticas do que o da crise pandémica que submergiu o planeta. No meio de tantos números, como é que se consegue tempo e proeminência? Avançando com cenários tenebrosos, com curvas de progressão da pandemia mais ou menos inclinadas, cujos pressupostos os autores não conseguem minimamente justificar, facto que não parece ter importância para ninguém, nem sequer para aqueles que, supostamente, têm como profissão depurar a informação que trabalham e divulgam. O jogo das projeções – permito-me designá-lo assim – é mais um contributo para essa insensibilidade que referi, em vez de ser verdadeira ajuda na caraterização e antecipação da progressão da pandemia. Não ficaria admirado se, devido à falta de eventos desportivos, um destes dias fossemos confrontados com o aparecimento de um desses jogos de sorte e azar do tipo “Placard”, onde se possa verter uma aposta sobre a evolução da taxa de mortos ou infetados que esperamos para o dia seguinte.

A este ambiente junte-se o contributo cacofónico das redes sociais. O respeito por amigos e colegas leva-me a não cortar, pura e simplesmente, o relacionamento em redes em que estou registado. Não é pela solidão acrescida que isso me pudesse trazer, pois o que na maior parte das vezes chega por esses meios são contributos para que a sensação de solidão aumente. Se não são teorias da conspiração, que pululam como cogumelos em tempo de chuva, são prescrições exaustivas do que fazer para não se ser infetado pelo vírus que nos condiciona a vida. Fossem recomendações sobre como lavar as mãos, permanecer resguardado, assegurar distanciamento físico relativamente a terceiros quando vamos à mercearia ou à farmácia, e seriam aceitáveis, socialmente benéficas. Mas não são, em geral. Num dos dias, via Whatsapp, chegou uma lista prescritiva do que se tinha de tomar e fazer para acabar com o vírus, caso fossemos infetados. A prescrição, que incluía a recomendação de beber água morna, foi passada acriticamente no grupo, com a chancela de ser da autoria do professor X. Pensei que fosse um epidemiologista, não conhecia o nome, fui à procura. O nome era de um professor, certo, mas com interesses profissionais na gestão de energia. Quer quem se deu ao trabalho de elaborar a prescrição, sem qualquer fundamento científico, quer quem a passou, acriticamente, prestaram um mau serviço à sociedade, contribuindo para o ruído reinante, para a desinformação geral. No limite, atitudes que contribuem para minar o esforço de gestão da pandemia por partes das autoridades de saúde, atitudes defraudadoras do bem geral.

Tempos estranhos estes que vivemos, em que os comentadores desportivos desapareceram de antena, por falta de matéria prima para os comentários, brotando, em sua substituição, uma horda de “treinadores de bancada” peritos na Covid19, na gestão de pandemias em geral. Por vezes nem é muito claro qual a formação académica ou profissional de tais “treinadores”, quais os saberes ou experiências que lhes permitem opinar com tanta veemência sobre a pandemia. Logo num dos primeiros dias da clausura, quando ainda se contavam pelos dedos de uma mão os infetados a nível nacional, uma douta cronista, num jornal de índole económica, exigia ao Governo que divulgasse à população portuguesa, de imediato, a lista das lesões com que ficariam as pessoas que apanhassem o vírus. Exigia! Termos fortes provocam sempre maior impacto na opinião pública. Tirando a exigência, não percebi o propósito da senhora, porque o teor da sua crónica não permitia inferir que o objetivo fosse, caso essa divulgação tivesse lugar, assustar os seus concidadãos para os levar a observarem o isolamento social de um modo mais intenso. Pensei na altura que o teor era, antes, de quem pretende criar ainda mais tensão e ruído no meio da tempestade em curso.

Hoje, sentando-me para escrever a presente, finalmente percebi o que poderá ter sido o problema por que essa cronista passava. O mesmo que me afeta, agora e possivelmente nos próximos tempos: sobre que hei de escrever neste tempo de crise? Sobre os “truques” usados por certas empresas na preparação da sua informação financeira, assunto que é a minha especialidade? (Quem é o leitor que está com disposição para tal tipo de leitura, sobretudo quando as empresas são esmagadas pela crise?) Sobre o aumento exponencial das fraudes eletrónicas, nesta altura em que estamos todos pendurados nas redes e tais crimes nos parecem ainda mais inqualificáveis, por contribuírem para aumentar o já grande sofrimento alheio? (Idem, quem se quer deprimir ainda mais?) Sobre o que o Governo devia ter feito e não fez na condução da crise? (Para ser mais um “treinador de bancada”?Haverá um tempo para avaliação do respetivo desempenho, mas não me parece que esse tempo já tenha chegado.)

Decidi. Não contribuirei para aumentar o ruído existente. Pelo contrário, proponho silêncio. Não um, mas três minutos de silêncio.

  • Um minuto, em memória dasvítimas mortais da pandemia no mundo. [… silêncio …]
  • Um minuto, emhomenagem a todos os que os que na linha da frente – profissionais do sistema de saúde, forças policiais, bombeiros, cuidadores formais e informais, governantes, etc. – zelam por quem foi atingido pelo vírus ou procuram evitar que os ainda sãos o sejam.[… silêncio …]
  • Um minuto, em agradecimento a todos os cidadãos anónimos que, direta ou indiretamente, dão o melhor de si mesmos para que esta crise seja ultrapassada com um mínimo de danos possível. [… silêncio …]

Obrigado, leitor. Fique bem. Cuide de si, para cuidar dos outros.