Mário Tavares da Silva, Expresso online (061 04/03/2020)
Sem que percebamos bem porquê, todos nós, em algum momento das nossas vidas, desejámos ter algo diferente, distinto do que é habitualmente adquirido pelo comum dos mortais, algo de marca, daquelas que pululam em glamorosas revistas internacionais e em sofisticados canais de cabo…enfim daquelas muitas marcas a que só a carteira de poucos pode almejar. Felizmente, para muitos, com as suas múltiplas plataformas de compras online dos mais variados produtos e marcas de luxo, a internet oferece alternativas para a compra de sucedâneos, com razoável nível de satisfação para o consumidor, refira-se.
E mesmo para os que não se ambientem, de todo, com a rede global e preferem tratar as coisas de forma mais simples, sempre existirá ainda a possibilidade de recorrer às tradicionais feiras que, um pouco por todo o país, nos vão mantendo viva a chama da tradição. Neste particular das compras de «réplicas de luxo» pelos que não podem aceder aos originais, a reflexão que hoje aqui vos trago transporta-nos para o problema maior da contrafação, realidade por todos conhecida e contra a qual muito terá ainda que ser feito, quer no plano nacional, quer no plano internacional.
Como todos bem sabemos, os produtos falsificados ou contrafeitos imitam ou inspiram-se nos produtos originais, razão pela qual a sua comercialização não é legalmente permitida. Dir-se-ia, pois, que de um ponto de vista estritamente legal, o produto falsificado ou contrafeito resulta de uma utilização fraudulenta de um direito de propriedade intelectual (DPI) que deveria gozar de proteção num determinado território de um certo Estado soberano.
Sucede, no entanto, que nem sempre assim é.
Desde logo, pela existência e proliferação de produtos falsificados ou contrafeitos.
A «imagem de marca» desses produtos falsificados ou contrafeitos passa pela sua negociação e venda em mercado a preços muito atrativos para o consumidor, reflexo, é certo, de uma qualidade inferior. Acresce que por essa via se alimenta todo um comércio em rápido e franco crescimento, com os inevitáveis riscos que esse fenómeno acarreta para os Estados, agentes económicos e consumidores. Segundo as avaliações mais recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), o comércio de falsificações em todo o mundo representa 460 mil milhões de euros em 2016, ou 3,3% do volume do comércio mundial. A UE é, refira-se, particularmente afetada, uma vez que as falsificações representam 6,8% das suas importações, registando-se, concomitantemente, e de forma não negligenciável, um aumento das apreensões de produtos perigosos para a saúde e para a segurança dos consumidores.
É assim sem surpresa, que se constata que o impacto do comércio falsificado, estimado para a União Europeia (UE) em dez setores económicos no período de 2012-2016, redundaria numa perda de 700.000 empregos e de receita fiscal estimada em 16,3 mil milhões de euros/ano.
O preocupante é que mesmo estas avaliações são consideradas por muitos algo conservadoras, dada a complexidade e a opacidade do fenómeno, constatação ainda agravada pela incompletude, inconsistência e falta de harmonização entre os diferentes Estados quanto aos dados disponíveis.
Segundo o EUIPO, a França é o país logo a seguir aos Estados Unidos, cujas empresas são mais afetadas pela falsificação, seguindo-se-lhe a Itália. A verdade, por muito que ela nos custe, é que até agora não existe qualquer estudo de natureza estatístico que permita medir, de forma segura, a extensão do fenómeno e o seu real impacto nas economias dos diferentes Estados.
Sabemos, apenas, que na base deste crescente e preocupante fenómeno estão razões tão diversas como a da liberalização do comércio mundial associada à proliferação de áreas de comércio livre, o rápido desenvolvimento de novas rotas comerciais e o significativo aumento do comércio eletrónico através de plataformas fragmentadas e mal regulamentadas que tendem a frustrar, implacavelmente, os controlos alfandegários instituídos pelos diferentes Estados recetores.
Ora é neste frágil quadro regulatório que emergem elaborados circuitos de falsificações, permitindo aos infratores enviar, sem risco de deteção e controlo, etiquetas e logotipos separadamente dos respetivos produtos falsificados ou contrafeitos.
Por outro lado, a sistemática consideração da falsificação ou contrafação como uma fraude sem vítima, impede a compreensão da sua magnitude e dos múltiplos efeitos prejudiciais que acarreta. Nesta medida, e para além de reparar os danos que causa aos detentores dos DPI, a luta contra a falsificação ou contrafação deve também radicar na magnitude dos riscos associados ao seu desenvolvimento, tais como os danos provocados à saúde, à segurança do consumidor e ao meio ambiente e, ainda, às perdas substanciais de receitas fiscais e sociais para os Estados, resultantes do desvio de recursos de todo sem benefício de alguns poucos (nalguns casos mesmo para o financiamento do crime organizado e de organizações terroristas).
Ora todos estes impactos negativos provocados na economia e nos negócios do Estado corroem qualquer ímpeto reformista que os Estados possam querer abraçar, minam os esforços de inovação e, sobretudo, destroem de forma irreversível a confiança dos consumidores.
É tempo, por conseguinte, de nos consciencializarmos da importância que a luta a este fenómeno assume nos dias de hoje, em prol de uma sociedade mais justa e mais solidária, mesmo que tal signifique não termos a nossa «réplica de luxo».