António João Maia, Expresso online (057 05/02/2020)
Confesso que até ao último segundo estive hesitante em escrever este texto.
Não porque sinta que ele não seja importante ou até eventualmente necessário, mas sobretudo por não deter uma formação muito profunda nem detalhada acerca das questões do direito e das ciências jurídicas e, por isso, assumo-o, arriscando-me a tecer considerações juridicamente menos correctas.
Ainda assim e apesar disso decidi correr esse risco uma vez que – e este foi o factor que decisivamente determinou a minha opção por escrever estas linhas –, bem vistas as coisas, se há realidade que tem uma relação particularmente estreita com a nossa existência colectiva, com a nossa vida social, com a cidadania, são as leis.
Afinal de contas, a existência e subjacente operacionalização da lei é também muito e no essencial uma questão de cidadania. A lei existe fundamentalmente para regular as relações que estabelecemos uns com os outros, como podemos ver por exemplo na Infopédia, onde o termo lei surge associado a noções como: 1 – prescrição do poder legislativo cujo cumprimento visa a organização da sociedade; 2 – qualquer norma de conduta, geralmente jurídica, preceito emanado de autoridade soberana; 3 – obrigação; regra; norma (consulta em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/lei).
De forma muito simplista, podemos aceitar que a lei assenta nas tradições e nos costumes para assumir a regularidade das relações entre os indivíduos e entre estes e os objectos do mundo, conferindo-lhe um certo formalismo, um certo grau de certeza. No fundo para lhes conferir um quadro de expectativas sobre relações futuras idênticas ou da mesma natureza. A lei existe para nos proteger enquanto comunidade. Para nos afastar tanto quanto possível do livre arbítrio.
E como sou um cidadão que se interessa pelas questões sociais, tenho, como qualquer simples mortal, a minha impressão, a minha percepção, a minha leitura do que seja a lei, do seu significado e da sua importância.
E é de certa forma essa percepção que aqui partilho como modesto contributo para uma reflexão que me parece importa ser feita – e que será feita num futuro mais ou menos próximo, não tenhamos grandes dúvidas – acerca de uma nova realidade que está a emergir e com a qual necessariamente nos vamos debater, que é a da reprodução pública de elementos informativos de toda a espécie relacionados com práticas, negócios, interesses, relacionamentos mais ou menos privados, e cujo conhecimento acaba por se revelar portador de eventual potencial de interesse público uma vez que podem conter elementos informativos relacionados com práticas anti-sociais graves, como a fraude e a corrupção ou até outros delitos de elevada censurabilidade.
Os recentes casos do futebol leaks e, agora, do Luanda leaks, a par de outros que o mundo tem conhecido – e, com grande probabilidade, dos que o futuro há-de revelar – são evidências desta realidade emergente.
A realidade tecnológica hoje caracteriza-se pela existência de gigantescos acervos de informação – as clouds ou nuvens – onde são armazenados todos os nossos passos. Toda a nossa actividade, desde uma simples comunicação electrónica ou SMS a confirmar o agendamento de um almoço com um amigo, passando por uma conversa telefónica sobre o andamento de um projecto, ou o registo das nossas classificações escolares e dos exames e relatórios médicos, até aos nossos negócios e movimentos bancários, toda a nossa vida (individual e colectiva, particular e institucional) fica registada algures nesses amontoados de bits e bytes que nos “garantem” estar seguros, a salvo de qualquer risco de poder cair em mãos erradas ou de ser indevidamente escrutinada.
Porém o que esta nova realidade tem mostrado é algo bem diferente. Todo este acervo informativo parece encontrar-se vulnerável à possibilidade de ser acedido, e depois divulgado, por quem não tem legitimidade nem o direito de operar esses acessos e divulgações. Os chamados hackers conseguem encontrar e explorar as fragilidades dos sistemas tecnológicos de circulação e guarda de todo o tipo de informação.
E é neste ponto que voltamos à questão da lei.
A lei portuguesa, como de resto nos demais países, pelos menos nos do chamado mundo desenvolvido, é clara quanto à proibição destes acessos, bem como quanto à divulgação da informação acedida, nomeadamente quando esta esteja relacionada com a esfera da vida privada e económica dos sujeitos. O pressuposto em que essa lei assenta – e estou em crer que dificilmente alguém tenha dúvidas ou sequer reservas quanto à sua utilidade – é a de que existem determinadas áreas da vida das pessoas e das organizações que devem ser mantidas em recato e cuja exposição pública só poderá ocorrer desde que os próprios o façam de livre vontade ou dêem autorização nesse sentido. Um dos principais fundamentos deste pressuposto reside na procura e manutenção de um certo equilíbrio de tranquilidade e paz social. Por isso a sua violação é de tal modo grave que a grande maioria dos países, incluindo Portugal, a pune legalmente como crime – os crimes são os actos de maior censura social numa sociedade.
Noutra lei, estabelece-se que qualquer suspeita da ocorrência de um crime deve ser objecto de um esclarecimento, o qual só pode ser realizado por entidades competentes e através de regras próprias. O Ministério Público e as Polícias que coadjuvam a sua ação são as entidades que têm essas competências e o Código de Processo Penal estabelece o quadro legal para que realizem a denominada investigação criminal. O pressuposto associado a estas leis será fundamentalmente o de assegurar a objectividade e isenção da investigação criminal e garantir um conjunto de direitos a quem se encontre na condição de suspeito, nomeadamente a presunção de inocência até à decisão final em julgamento pelo tribunal.
Nos termos da mesma lei do processo penal, o suspeito do crime só poderá ser sujeito a julgamento pelo tribunal se da investigação criminal realizada resultarem indícios probatórios objectivos que façam presumir com algum grau de probabilidade ter sido o seu autor. Um pressuposto fundamental neste âmbito reside no facto de a lei preferir obrigatoriamente a absolvição do suspeito sempre que se gerem dúvidas quanto a ter sido indubitavelmente o autor do crime – o denominado princípio in dubio pro reo.
Como se procura mostrar, a lei tem uma importância inquestionável no seu papel de defender e assegurar para todos a regularidade de um certo quadro de expectativas sobre o que deve ser a vida colectiva.
Mas o problema que está a emergir prende-se com o modo como o quadro de expectativas sociais pode ser legalmente salvaguardado ou garantido relativamente às divulgações destas informações acedidas fora da lei, é certo, mas que suscitam a suspeição de, por sua vez, poderem estar associadas a outros crimes igualmente graves.
Creio não existirem grandes dúvidas de que no actual enquadramento legal estas supostas provas de outros crimes – nomeadamente de possíveis crimes de corrupção e outros de natureza económica e financeira, como o branqueamento de capitais ou a fraude empresarial – não podem ser valoradas uma vez que não foram acedidas nos termos da lei do processo penal. O acesso a elas não resultou da acção de nenhuma das entidades com funções de investigação criminal.
Por outro lado, questiona-se, então o que fazer com essa informação ou como dar-lhe utilidade, uma vez que ela levanta suspeitas muito fortes de estar associada a outros crimes cujo esclarecimento e eventual punição dos autores é também do interesse da sociedade e, por isso, um factor de reforço da paz social.
Creio mesmo que não se possa excluir a possibilidade de algumas destas situações de suspeição de práticas de crime ou mesmo de grande criminalidade organizada só poderem ser conhecidas através da acção de hackers.
Se o sistema judicial nada fizer para lá da punição dos hackers, os cidadãos tendem a reduzir ainda mais o já de si baixo índice de confiança na capacidade da justiça para punir a grande criminalidade económica.
A leitura que tende a passar para a praça pública, e que parece ser a que já existe junto do cidadão comum, é uma vez mais a de que o sistema protege os mais poderosos e influentes, preferindo condenar – “amordaçar” – os mais fracos, neste caso aqueles que acedem e divulgam as informações dos grandes esquemas de corrupção e de outro crime económico, reforçando uma certa percepção de impunidade associada a este tipo de crimes.
Talvez a solução possa estar compreendida algures entre uma validação formal destes elementos, naturalmente que depois de devidamente avaliados e analisados quanto à sua veracidade e pertinência e até, se possível, complementados com outros elementos colhidos agora já no âmbito de um procedimento formal de investigação criminal, independentemente da aplicação das punições a que haja lugar a quem acedeu ilicitamente a tais elementos.
Importa que quem pensa e faz lei equacione devidamente esta nova realidade de modo a acautelar todos os interesses associados à questão. Para que a lei continue a assegurar a proteção de todos, e não para que, a pretexto da lei, uns continuem a sentir-se prejudicados em benefício de outros.