António João Maia, Expresso online (051 26/12/2019)
O tempo do Natal é um tempo diferente!
É um tempo em que, não obstante a pressão consumista que nos envolve, ainda nos conseguimos reunir em família e, ao jantar e serão que se lhe segue, entrar num espaço que contém alguma magia, nem que seja ao menos por nos permitir recordar os Natais das nossas infâncias...
É um tempo em que nos reencontramos com familiares e amigos, em que fazemos balanços do ano que chega ao fim e, porque o próximo está já ali adiante, lançamos também projectos e sonhos para nele serem concretizados…
Em suma, o Natal é um tempo de consumo, um tempo de rever e estar com amigos e familiares, um tempo de troca de presentes, feitos lembranças, para sinalizar como esses familiares e amigos nos são queridos e que por isso não nos esquecemos deles – nem eles de nós –, um tempo para relembrar e partilhar memórias de infância, um tempo para fazer um balanço descomprometido do que está para trás e também para começar a olhar para os projectos que temos para a frente.
Será mais ou menos este o contexto, com nuances que cada um conhecerá melhor do que ninguém, que nos faz mergulhar nessa espécie de momento de magia, nesse tempo diferente, nesse tempo de maior descomprometimento com os afazeres e as responsabilidades do nosso quotidiano e, no limite, até de algum descomprometimento connosco próprios, com as nossas ideias e certezas.
E é justamente a pretexto deste contexto de alguma magia natalícia que hoje, dia de Natal, me proponho reflectir sobre a questão da corrupção no nosso país.
Porque o tema é naturalmente importante. Porque respeita e interessa a todos, sem excepção. Porque, quem sabe, a pretexto desta leitura ou, o que é mais provável, mesmo fora dela a questão da corrupção venha a ser ponto de troca de opiniões nalguns serões natalícios desta noite…
Todavia a reflexão que hoje partilho não parte nem pressupõe, como habitualmente, a dimensão negativa do fenómeno nem dos factores que dele se conhecem, nem sequer de sugestões para alterar um certo estado de coisas.
Hoje quero simplesmente dar nota de uma espécie de sonho. De uma utopia, talvez.
Então o sonho é mais ou menos assim:
Imaginemos que no nosso país não havia corrupção nem fraude, nem outro tipo de actos delituosos, como a violência ou todas as formas de exploração, incluindo sobre as mulheres e crianças, nem o desrespeito pelos animais e pelo ambiente.
Que toda a vida social se desenrolava dentro de um quadro de normalidade de expectativas sobre o que deve ser o relacionamento entre as pessoas, entre as instituições e entre as pessoas e as instituições.
Que toda a denominada vida pública, desde o exercício dos mais elevados cargos políticos até às menos relevantes – mas nem por isso menos importantes – funções da Administração Pública, se fazia por respeito aos mais elevados índices de integridade e que a transparência era critério inquestionável e igualmente seguido por todos.
Que os cidadãos cumpriam sem reserva os seus deveres de contribuintes para custear a existência de toda uma estrutura de serviços públicos de gestão do Estado e dos Interesses colectivos, por sentirem e confiarem que essa estrutura exercia adequadamente essa função.
Que o processo de feitura das leis era exclusivamente concordante com os princípios da Constituição da República e com os grandes Valores colectivos que dão forma à nossa matriz cultural, confirmando assim e dando expressão, validade e coerência a tais princípios e Valores.
Que sempre que alguém em exercício de funções de natureza pública, fosse titular de cargo político ou de cargo de natureza administrativa, estivesse em situação de conflito de interesses se afastava imediatamente ou solicitava afastamento do procedimento relativamente ao qual se verificava a presença desse conflito, para evitar quaisquer reservas sobre o bom desenvolvimento do procedimento e a isenção e objectividade que deve caracterizar o exercício de funções de natureza pública.
Que não havia práticas de suborno nem de corrupção nos grandes – nem nos pequenos – projectos de contratação e execução de obras públicas nem de outros quaisquer procedimentos de contratação pública.
Que quem exercesse funções de natureza pública seria sempre zeloso, cordial, cuidadoso e expedido na realização das suas tarefas e afável na relação com os destinatárias da sua acção – os utentes dos serviços.
Que quem exercesse funções de natureza pública não se apropriasse nem utilizasse em seu benefício próprio bens, valores ou património das entidades onde esse serviço seja exercido.
Que os cidadãos respeitavam sempre as decisões administrativas que os afectassem, com excepção das que pudessem ser legalmente objecto de recurso, porque elas eram as únicas que podiam ser tomadas em concordância com os quadros normativos que as tinham originado e porque, como cidadãos, não haveria nenhuma outra opção ou reacção que concomitantemente pudesse ser tomada.
Que não havia nenhum tipo de abuso de poder por parte de quem exercia funções de natureza política ou pública, nomeadamente de abuso de poder que se traduzisse na redução ou limitação do exercício de direitos por outro qualquer cidadão.
Que os tribunais e a justiça eram eficazes e céleres do exercício do sua função de controlo sobre a sociedade, admitindo sempre a possibilidade legal da existência de recursos.
Esta seria uma espécie de sociedade perfeita, em que as pessoas se respeitavam umas às outras como seres humanos, em que todos confiavam em todos e que por isso mostrava elevados índices de integridade e de coesão social.
Todos reconhecemos que este sonho é muito provavelmente uma utopia, como referi no início, e que é por isso impossível de alcançar.
Mas se a perfeição assim sonhada é impossível de alcançar, cremos que o mesmo não se possa dizer relativamente à procura de soluções que aproximem as expectativas do nosso viver colectivo à utopia.
A história tem demonstrado isso mesmo, que muitos projectos vingam porque alguém acreditou neles, porque alguém viu previamente não a impossibilidade mas a utopia. Recordemo-nos, para o caso de Portugal, da epopeia dos descobrimentos.
E, como já referi aqui em crónicas anteriores, como por exemplo em Contra a corrupção marchar, marchar!, para nos aproximarmos da utopia teremos logo à partida de acreditar todos na possibilidade da mudança e, ainda mais importante do que isso, terá cada um de nós de ser responsável por operar e por se envolver no processo de mudança.
Para o caso do problema da corrupção será desde logo importante que, para lá de apontarmos o dedo aos outros e aos seus exemplos menos adequados – o que é sempre um exercício muito fácil –, seja cada um de nós capaz de por a mão na consciência e perceber o que pode fazer para melhorar as nossas práticas e as nossas opções no plano da ética e da integridade diária.
Claro que a lei e os instrumentos de controlo sobre os procedimentos e as organizações de natureza pública são de grande importância. Mas a acção e o exemplo de cada um – indiferentemente de ser servidor público ou unicamente cidadão - perante os demais é igualmente de importância primordial.
Depende de nós! A capacidade para alcançar um mundo melhor, para alcançar uma realidade próxima da do sonho, depende de nós! Depende de todos e sobretudo de cada um de nós! Daquilo que cada um for capaz de fazer! Do exemplo que cada um der aos que o rodeiam! Daquilo que cada for um capaz de exigir dos outros!
A todos deixo Votos de um Santo e Feliz Natal e que o próximo ano nos traga saúde e paz e também soluções mais eficazes no controlo da corrupção – como de resto parece ser propósito do Governo – acompanhadas de uma outra capacidade de consciência individual sobre o que deva ser a integridade e do contributo que cada um pode fazer nesse âmbito.