Óscar Afonso, Expresso online (050 19/12/2019)

A crónica de hoje visa continuar a refletir sobre a entrega de uma licença com direitos exclusivos de mineração de lítio, na zona de Montalegre, a uma empresa constituída três dias antes da decisão e que não tem nenhum histórico de atividade ou know-how na mineração e produção de lítio. Qualquer pessoa entende que o recurso é importante, mas o que realmente importa em termos económicos é a capacidade para produzir um produto que possa ser vendido. Como é possível que um negócio tão sensível esteja então centrado numa empresa que: Ainda não tem atividade e já está envolvida em processos nos tribunais por litígios entre os sócios! Apresenta como "consultor" financeiro um ex-governante socialista! Nasceu com a morada de uma junta de freguesia controlada pelo PS! No projeto que submeteu ao governo se comprometeu a apresentar um capital social de um milhão de euros, mas que afinal são só 50 mil euros! A este propósito, o banco de investimento FinnCap fala em “défice de credibilidade” quando se refere ao diminuto valor de mercado das empresas que tencionam levar a cabo explorações de lítio na Europa comparado com o custo de estabelecer minas e refinarias.

É dado como certo que o lítio é uma matéria-prima fundamental para diversas tecnologias futuras, particularmente para armazenamento de energia. Em abono da verdade, trata-se de um ponto muito discutível, pois há quem considere que dentro de uma década ou menos, será uma tecnologia obsoleta, uma vez que já há outras alternativas em estudo e testes. Por exemplo, o grafeno para os telemóveis, o hidrogénio e combustíveis sintéticos para os automóveis elétricos. Que fique claro, a “corrida” ao lítio – a ter motivações defensáveis bondosas – só pode dever-se à previsão de aumento de produção de baterias para os carros elétricos. Em termos de comparação, um smartphone Samsung Galaxy J5 gasta cerca de um grama de lítio, enquanto uma bateria de um Tesla 70 kWh necessita de 12 Kg de lítio. Ou seja, as ordens de grandeza não são comparáveis. Por outro lado, a construção atual de baterias, por exemplo, dos smartphones utiliza outros metais (ex. o cobalto), conhecido pela extração em África à custa de trabalho infantil em condições desumanas.

Seja onde for, a exploração de metais nunca teve nada de “verde” e a exploração de lítio para construção de baterias em Portugal não terá também nada de “verde”. Mas isso pronto são as contradições dos socialistas que defendem o ambiente para as televisões, mas também as minas, e a substituição, já agora, dos paralelos nas ruas de localidades por alcatrão, como é o caso de Matosinhos onde resido! Ficará apenas o “cinzento” e o “preto” no pobre interior – a destruição da paisagem e do património arquitetónico, as limitações de acesso a água potável, a dificuldade de acesso a solos aráveis não contaminados, o agravamento do estado de saúde das populações, os impedimentos no acesso a propriedades confinantes com as explorações, a mudança nas dinâmicas sociais da comunidade, a perda de atratividade turística, a desvalorização de imóveis, e claro um ainda maior abandono do já abandonado Trás-os-Montes –, e fica desde já o “cinzento” e o “preto” que envolvem o interesse tão voraz pelo negócio.

Aparentemente, foi no contexto atual de crescente dinamismo da procura de lítio que o governo Português desejou patrocinar a constituição do grupo de trabalho, sob despacho do secretário de Estado da energia nº 15040/2016, publicado no Diário da República, série 2, de 13 de dezembro de 2016, de modo a identificar e caracterizar o lítio em Portugal, bem como as respetivas  atividades económicas e a possibilidade de produção de lítio metálico em unidades específicas de processamento e beneficiamento. Neste processo estranho, duas perguntas simples emergem, desde logo, na cabeça de qualquer português: (i) Que critérios foram usados pelo governo para a constituição do grupo de trabalho? (ii) Qual será o verdadeiro interesse do negócio?

Para além do já exposto, as duas perguntas decorrem também do seguinte facto. Ao que consta, nove dos onze locais identificados como áreas de lítio são áreas classificadas com grande valor comunitário – creio que oito são áreas da Rede Natura 2000 e uma é uma área protegida, um parque natural. Creio ainda poder afirmar que, no caso de Montalegre, por exemplo, a exploração mineira com contrato celebrado vai afetar áreas que são património agrícola mundial, reserva da biosfera, e que a maior parte do concelho integra a Rede Natura 2000! É importante destacar que o relatório sobre o lítio, produzido pelo grupo de trabalho, dá – naturalmente – pouca atenção a essa grande restrição e nãoconsidera, em termos de análise financeira, a importância de preservar os valores naturais, o que, no mínimo, sugere uma depreciação da importância desse recurso. Confirma-se que para o PS só é crucial preservar os valores naturais quando há interesse político!

É também de salientar, para compreender a estranheza disto tudo, que os recursos de lítio existentes em Portugal são irrelevantes na esfera mundial, pois correspondem a menos de 1% (total mundial: 54,175 milhões de ton; Total Portugal: 130.000 ton, dados USGS de 2019), havendo, quando muito, uma enorme especulação de preço à volta do lítio. Na verdade, não há escassez atual de lítio. Aliás, o preço tem vindo a descer no último ano, ainda mais com a notícia anunciada pela China que pode produzir lítio a 1/9 do custo atual. Os custos de exploração do lítio das nossas serras, extração e separação da rocha encaixante onde existe são cerca de 5 vezes superiores ao do lítio que existe nas salmouras da América do Sul ou na Austrália ocidental. Tudo isto contribui, pois, para que este negócio “cheire a esturro” e para a pertinência da pergunta: Quais serão então efetivamente as verdadeiras motivações do negócio? O que se lê da reação dos investidores é apenas que há uma “janela de oportunidade” que se abrirá daqui por meia dúzia de anos e que pouco durará, pelo que os riscos para o nosso país são imensos.

Assim, não há dúvida que o governo está a jogar com a roleta russa de um mercado instável, imprevisível e onde outros têm muito mais poder de controlar o jogo. A Savannah Resources tem uma abordagem “prudente” e sustenta que irá enviar concentrado de lítio para a China para refinar nos primeiros anos e só irá construir a refinaria em Portugal quando se assegurar uma parceria. Diz também que, para maximizar produção e recuperar os custos, pensa trazer concentrado de lítio da África e do Brasil pelo porto de Leixões para o refinar. Neste contexto, torna-se pois natural pensar que a motivação do investimento é esbanjar recursos – fundos comunitários – com alguns (os mesmos de sempre)!

O relatório do grupo de trabalho também faz referência à necessidade de garantir uma economia social ea exploração ambientalmente sustentável dos recursos geológicos. Mas depois, enfim, todas as recomendações e propostas focam apenas a sustentabilidade económica direta do projeto. Esperava-se uma análise financeira verdadeiramente independente dos custos associados à minimização dos impactos, não apenas em termos de restauração ecológica em superfície, mas fundamentalmente no que diz respeito às águas e lamas contaminadas, bem como subprodutos sem potencial de reutilização. Também se esperava encontrar uma análise da pegada ecológica, incluindo as emissões de gases de efeito estufa associadas ao processo de transformação, cujo custo pode representar 1/5 dos custos operacionais da produção de concentrados de lítio.

Devido aos custos de exploração, o relatório faz referência à importância da reciclagem de produtos em fim de vida, nomeadamente baterias de iões de lítio, implementando um sistema de economia circular. Mas esse processo de reciclagem é complexo e caro, o que significa que a recuperação de baterias em fim de vida útil é economicamente inviável por si mesmo. Atualmente apenas uma pequena percentagem de baterias pode ser reciclada e apenas um país executa a reciclagem: a China e fazendo-o com meios incomparavelmente superiores aos nossos, mas reciclando somente cerca de 10% das baterias em fim de vida. Só para ter uma ideia das dificuldades associadas à reciclagem, a Tesla, por exemplo, está ainda a estudar a reciclagem das suas baterias. Será que se deseja que a reciclagem venha a ser mais um novo “negócio”estranho a somar à estranheza do anterior?! A reciclagem das baterias em fim de vida permitirá certamente o recurso a mais fundos comunitários que, assim, serão também “apropriados” pelas pessoas certas.

O relatório do grupo de trabalho sugere ainda o estabelecimento de um recurso geológico destinado a apoiar ações de conhecimento, conservação, proteção e avaliação debens geológicos. Finalmente, o relatório também considera que seria uma vantagem extrair valor para a população (pobre) local e nacional, sem cometer o mesmo erro dos contratos de hidrocarbonetos, nos quais a compensação financeira ao Estado Portuguêsrepresenta apenas 10% dos lucros, considerando que seria também importante estabelecero mecanismo de responsabilidade social corporativa mais como um incentivo para agir do que como umaobrigação.Se o interesse pelo pobre interior é assim tão relevante e não é apenas “discurso” para a TV, espanta-me que, no cenário catastrófico de avanço do processo, não se admita que tão esperada significativa compensação financeira não seja atribuída na totalidade ao município, ou seja, não seja concedida às marginalizadas populações locais que carregam os custos. O Estado já beneficiaria da intensa receita fiscalesperada e chegaria, ou não?!

Em suma, ogrupo de trabalho, cuja independência coloco em causa, concluiu que o mineral de lítio de Portugal é económica etecnologicamente recuperável. Porém, esqueceu (como sempre acontece com o interior) a região e os que lá vivem e deu pouca atenção às restrições ambientais, algo que não deve acontecer se se quiser criar uma estratégia de longo prazo, capazde contabilizar todos os custos associados. Cada estágiodo ciclo de vida de um mineral acarreta riscos ao meio ambiente e à população. A contabilização dessas externalidades pode dobrar ou triplicar o preço da exploração, potencializando a reciclagem e os segundos usos. Além disso, os verdadeiros impactos negativos são muito maiores doque os númerossugerem, não apenas porque alguns impactos não foram levados em consideração, mas também porquealguns deles, apesar de identificados, dependem do clima instável ou ainda não estãoquantificados. Contabilizar esses impactos tornaria certamente as fontes de energia renováveis, juntamente com investimentos em métodos de eficiência e armazenamento, economicamente competitivas em relação aos combustíveis fósseis.Em particular, é importante de uma vez por todas entender como os impactos da extração e processamento afetarão o ambiente e saúde humana na região, uma vez que é aí que tudo terá lugar.

O crescente uso e preferência por veículos elétricos terá, sem dúvida, fortes impactos económicos imediatos, especialmente no caso de lítio e outros metais necessários para a construção de baterias. No entanto, essa tendência aparentemente altruísta e genuína tem muitos efeitos perversos, colocando muita pressão nesse recurso escasso e na sua capacidade de responder à procura.O futuro da extração e processamento de lítio teriade garantir boas empresas, responsabilidade social e ambiental, incluindo recuperação e regeneração ambiental daárea explorada para ser usufruída pela sociedade, em conformidade com a legislação em vigor.Em Portugal, no entanto, tal desiderato lança muitas dúvidas e incertezas se tivermos em conta o passivo ambiental que resultou da atividade extrativa anterior, revelando-se o Estado sempre incapaz de o evitar – a extração nunca foi de todo verde! E não foi (apenas) a legislação que falhou...! Acresce que as reservas existentes em Portugal deixam muitas dúvidas sobre a viabilidade do investimento.

Há ainda quem diga que seria importante não concentrar a grande quantidade de impactos negativosde extração e processamento em apenas alguns locais.Se Portugal fosse um país que possuísse desertos como o de Atacama (Chile) ou o deserto de Vitória (Austrália) poderíamos, aí sim, escolher. Ainda assim, embora o Chile possua 52% das reservas mundiais, a sua extração tem causando danos irreversíveis no deserto de Atacama, no seu ecossistema, e nas comunidades vizinhas. Quem o diz é Sergio Cubillos, presidente do Conselho dos Povos Atacameños. De igual modo, Bárbara Jerez Henríquez, professora e investigadora da Escola de Serviço Social da Universidade de Valparaíso, acredita que a exploração do lítio no deserto de Atacama transformou o local numa “zona de sacrifício”.Matilde López Muñoz, professora de biologia que atualmente trabalha como académica na Universidade do Chile, com doutoramento em ciências sociais, ecológicas e económicas, estranha que “existam três países essencialmente ricos em lítio. … a Bolívia... Argentina... (mas) o mineral é simplesmente extraído aqui (Chile)”. Por tudo o já referido, mas também porque se trata de um país pequeno, com um território bastante humanizado e um povoamento na maior parte dos casos dispersos, não é ambiental e socialmente, na minha opinião, defensável (e sustentável) a exploração mineira “a céu aberto” em Portugal. A única opção certa é, naturalmente, não haver! No caso português, a pouca fé no governo reforça essa opção.

Neste negócio estranho, certamente motivados por desejo de acesso a fundos europeus, que servem uma elite, há ainda razões de sobra para acreditarmos que a legislação tem vindo a ser “preparada/cozinhada” por forma a favorecer o processo. Se assim não fosse, alegislação deveria, no mínimo, ser alvo de uma análise muito séria e independente. Não é, pois, aceitável que alguns desejem enriquecer ainda mais à custa dos direitos sociais, ambientais e económicos das comunidades locais.