José António Moreira, Expresso online (048 04/12/2019)

Entre os meus afazeres profissionais está o contribuir para a formação académica de jovens que serão os economistas de amanhã, quiçá futuros líderes da nossa sociedade. No domínio da informação financeira das empresas, há um assunto que nunca consigo transmitir-lhes sem dificuldade: o das normas (regras) que subjazem à preparação dessa informação. Não descartando a culpa que neste domínio tenho, devido à minha incapacidade de os motivar para o assunto, o facto é que fico sempre com a ideia de que, de modo geral, jovens e normas não ligam bem.

Há uma regra que, na dificuldade em ser apreendida, se sobrepõe às restantes: o primado da “substância sobre a forma”. Pode ser definida do seguinte modo: na preparação da informação a substância económica das transações deve sobrepor-se à sua forma legal. Assim enunciada, proposta a jovens que têm dificuldade em perceber o que é uma empresa e como funciona, reconheço que esta regra não é de fácil compreensão. Por isso, quando as ondas sonoras da definição ainda vibram no ar da sala de aula, avanço com um exemplo palpável, qual granada que pretende evitar o erguer de uma muralha contra a “inutilidade das normas”: o caso das operações de “locação financeira” (“leasing”). Considere-se que a empresa, no âmbito de um contrato desta natureza, passa a utilizar uma viatura colocada à sua disposição pela empresa locadora. Fá-lo, ao mesmo tempo que cuida da sua manutenção, do seguro, do imposto, e do que de mais à viatura estiver associado. Enfim, em substância, controla a viatura, trata-a, como se fosse sua, apesar de formalmente a propriedade da mesma pertencer à locadora. Num contexto como este, justificado pelo referido primado, o tratamento contabilístico impõe que a viatura seja considerada no balanço da empresa, como se se tratasse de um dos seus bens. Prepondera, pois, a substância da utilização e controlo desse bem sobre a forma da relação proprietária inerente, de modo a tornar a informação financeira economicamente mais útil.

Mesmo depois desta exemplificação, os alunos continuam a considerar que a aplicação do referido pressuposto não faz sentido, porque, segundo eles, “é enganoso colocar a viatura no balanço da empresa se a propriedade não lhe pertence”. “E se o balanço da empresa não refletir os bens que ela utiliza na sua atividade, nem as obrigações financeiras para com a locadora, por nos guiarmos pela forma legal da propriedade? Não é isso grave e pouco informativo?”, costumo contrapor. Não os consigo demover da sua posição.

Pese esta inflexibilidade dos alunos, o organismo que emite as normas internacionais de contabilidade – o International Accounting Standards Board (IASB) – não só manteve essa obrigação, como a alargou. A partir do início do corrente ano, as empresas subscritoras de contratos de “locação operacional” (onde se insere o ‘aluguer de longa duração’), passam a ser obrigadas a registar nos respetivos balanços os bens utilizados ao abrigo desses contratos, bem como as obrigações financeiras associadas. Na sequência de tal obrigação, finalmente acabarão desabafos como o de Sir David Tweed, antigo presidente do IASB, quando certa vez disse que sonhava com o dia em que pudesse voar num avião que, efetivamente, existisse no balanço da transportadora aérea.

No domínio da informação financeira há, pois, um reforço ineludível do primado da “substância sobre a forma”.Pelo contrário, na sociedade, globalmente considerada, a tendência para privilegiar a forma à substância parece ganhar cada vez mais peso. Veja-se o caso da Justiça. Dois casos, muito recentes, ambos ligados à denominada Operação Marquês. No primeiro, um dos principais arguidos, dizia para os microfones que jornalistas lhe apontavam, olhando direto nas câmaras de televisão, que estava indignado com a intromissão da Justiça na sua vida privada, e que queria mostrar que as provas contra ele eram sem valor por terem sido recolhidas sem atender a determinados aspetos formais. Não dizia que eram falsas, ou que estava inocente. Dizia, sim, que tinha detetado uma qualquer falha formal e, subentende-se, que isso o protegeria de qualquer punição pelo que de mal tivesse feito. No segundo caso, o reputado presidente de uma grande empresa, acusado de ter pago uma cátedra numa universidade americana a um ex-ministro, tem os seus advogados a lutar para fazerem valer um qualquer vício de forma que impeça o uso pelos tribunais de um conjunto de e-mails onde, supostamente, consta evidência que o inculpa. Também neste caso, a substância – culpado ou inocente? – parece ser o menos importante, pois uma qualquer lapso formal, de quem recolhe a prova ou a julga, é o suficiente para lavar toda a culpa, por mais grave que seja.

Não se advoga que a Justiça vire completamente as costas aos aspetos formais, nem que os acusados deixem de gozar de adequados mecanismos de defesa. O que se deseja, sim, é que exista equilíbrio entre forma e substância, longe da preponderância da primeira sobre a segunda que hoje se verifica. Tendo por base leis repletas de todo o tipo de minudências, a Justiça deixou de ser cega e balanceada, e passou a favorecer os poderosos, os que têm meios para contratar famosos gabinetes de advocacia, dotados de peritos em detetar as mais ínfimas quebras de formalidade na recolha das provas ou na aplicação da Lei. Num tal contexto, a inocência deixa de ser o fator redentor, ea (falta de) forma lava toda a culpa, mesmo a dos crimes mais graves.

Também eu sonho, mas com um tempo em que volte a sentir que os arguidos de um qualquer processo judicial lutam por provar a respetiva inocência, não por encontrarem uma falha na forma por onde possam escapar impunes.