António João Maia, Expresso online (046 20/11/2019)
Há dias, durante um evento universitário em que participava, no âmbito do qual se abordava a problemática da corrupção e dos modos de se fazer o seu controlo no nosso país, a dado momento alguém da plateia questionou-me sobre o modo como avaliava a eficácia das medidas de combate à corrupção que têm vindo a ser adotadas pelos sucessivos governos ao longo dos últimos anos.
E nesse momento, creio verdadeiramente que pela primeira vez, dei conta que a questão assim colocada nos remete, ou pode remeter – naquele momento remeteu-me a mim – para uma certa noção de guerra ou de guerrilha. Para um certo contexto bélico. Para uma espécie de batalha entrincheirada, na qual, de um lado da trincheira, teríamos as instituições de controlo e todo um conjunto de cidadãos impolutos, acima de qualquer suspeita – lado onde efetivamente todos consideramos estar –, e do lado oposto, a trincheira dos atos da corrupção e da fraude e daqueles que alegadamente os praticam, e cujos nomes surgem a todo o tempo nas notícias dos jornais e das televisões por associação a tais suspeições, ao lado dos quais encontraremos também aqueles que a nossa imaginação lá quiser colocar, porque afinal de contas e bem vistas as coisas têm um estilo de vida ou um perfil que nos faz no mínimo deixar desconfiados.
Efetivamente a abordagem sobre o controlo do problema no nosso país tem-se feito muito em torno desta ideia de combate e de luta contra a corrupção. Veja-se, a título meramente ilustrativo, a denominação da Lei n.º 19/2008, de 24 de abril, medidas de combate à corrupção, expressão recorrentemente utilizada em muitos outros diplomas normativos sobre esta problemática, e que volta a surgir agora muito recentemente no Programa do XXI Governo Constitucional, em capítulo próprio com o título “Travar um combate determinado contra a corrupção”. As expressões com um cunho bélico têm surgido também associadas ao discurso de alguns especialistas sobre a matéria, como seja por exemplo, também a título meramente exemplificativo, a recente entrevista do Professor Nuno Garoupa ao jornal Diário de Notícias, "Partidos políticos desistiram de combater a corrupção", a propósito do lançamento de uma petição para o lançamento de Adoção de uma Estratégia Nacional Contra a Corrupção
Confesso que, naquele momento, quando a questão me foi apresentada no evento universitário, ela me suscitou logo uma abordagem inicial de alguma crítica sobre esta forma redutora de equacionar o problema.
Considero efetivamente que esta lógica bélica que tem sido referenciada é dicotómica e, por isso, muito minimalista. Ela diz-nos de certo modo, e de forma muito simplista, que uns – os que estão do lado correto, do lado da ética e da integridade, do lado do bem – estão numa espécie de cruzada permanente contra os outros, essa espécie de inimigo a abater – os falhos de ética e de integridade, os corruptos, os do lado do mal, por assim dizer – e que esta guerra não terá fim enquanto os “cavaleiros do bem” não forem capazes de alcançar a extinção ou, pelo menos, a redução drástica e o controlo das “forças do mal”. Enfim, a sempre eterna procura da supremacia do bem sobre o mal.
Ao invés, considero mais adequada e até preferível, porque potencialmente mais profícua, uma abordagem do problema que se faça segundo uma perspetiva global e abrangente. Holística, se preferirmos, em que tudo tem relação com tudo e em que todos os fatores explicativos são eixos igualmente importantes de abordagem a um problema que afinal e bem vistas as coisas é nosso, é de nós todos, e cuja procura de soluções para uma mitigação ou controlo mais eficazes deve envolver-nos e responsabilizar-nos a todos por igual e sem exceções.
O controlo da corrupção depende antes de tudo o mais da atitude de cada um de nós.
Ele faz-se desde logo a partir do exemplo e da responsabilidade de cada um na procura diária de incrementar os seus índices de Ética e de Integridade na sua relação com os outros, na certeza que essa atitude possa inspirar – e por certo inspirará – outros à sua volta a seguirem esses referenciais de verticalidade. Faz-se também da capacidade de cada um ser responsavelmente mais exigente sobre a atitude e os índices de integridade daqueles que o rodeiam e com quem tem de se relacionar, sendo capaz de dar mostras de desagrado e até indicações ou exigências de correção perante práticas inadequadas e inaceitáveis e, no limite, de denunciar as práticas de fraude e de corrupção de que tenha conhecimento.
Não um simples nós contra eles, mas um nós que assume por inteiro que tem um problema próprio – sim, a corrupção é um problema de todos nós e da nossa organização coletiva, que nos afeta a todos por igual –, associado à forma como nos organizamos e vivemos coletivamente. Quase como uma espécie de um vírus que se instala num corpo e que se vai manifestando aqui, ali e acolá, das mais diversas formas. A corrupção é um vírus das sociedades. E é um vírus complicado e complexo que produz efeitos muito nefastos. Reduz os índices de confiança e de coesão social, aumenta os custos de funcionamento do Estado e das estruturas que operam a sua gestão, e reduz a qualidade, a eficácia e a eficiência dos serviços prestados por essas estruturas.
A corrupção é um problema verdadeiramente nosso! E nessa medida temos todos o dever de estar envolvidos permanentemente na primeira linha, de forma a exigirmos mais e melhores índices de integridade de nós próprios. A exigirmos mais e melhor integridade de quem nos rodeia.
E, claro, as medidas de controlo do problema continuam a fazer todo o sentido. Elas devem permitir prevenir o fenómeno nas áreas onde ele possa suceder e mostrar uma eficiência e eficácia maiores nas áreas repressiva e punitiva, o que requer um melhor conhecimento das características do nosso problema de corrupção, da nossa realidade da corrupção. A propósito deste ponto importa dar nota que o Observatório de Economia e Gestão de Fraude continua disponível para colaborar, designadamente na dinamização de projetos que tenham propósitos muito semelhantes aos que propusemos no âmbito do projeto Mapear a corrupção em Portugal
À semelhança do desafio que nos convoca no último verso de “a Portuguesa” (o nosso hino nacional) para nos envolvermos, marchando, contra os canhões e ataques dos inimigos, é necessário que todos sejamos capazes de perceber e sobretudo de nos envolvermos, e por isso de marchar, contra este problema que a todos diz respeito.