Rute Serra, Expresso online (045 13/11/2019)
“Operação Teia”, “Operação Rota Final”, “Operação Éter” … O ano de 2019 tem sido fértil em investigações criminais direcionadas ao combate à denominada “criminalidade administrativa” a envolver responsáveis autárquicos e violações aos procedimentos de contratação pública.
Esta área de negócio do Estado tem, em Portugal, um impacto socioeconómico significativo. Cerca de 50% dos fundos estruturais da União Europeia (UE) recebidos pelo país são gastos através de processos de contratação pública, representando quase 20% de toda a despesa pública, ou seja, o equivalente a 10%do PIB português.
Da consulta aos dados disponíveis no Portal BASE.GOV constata-se que entre agosto e setembro de 2019 (últimos dados disponibilizados), mantém-se a tendência de quase metade do total das adjudicações públicas em Portugal serem realizadas através de ajuste direto. E com o aproximar do fim do ano fiscal, não se augura probabilidade de inversão. Para melhor esclarecimento, atente-se no quadro abaixo:
Apesar dos sucessivos alertas da entidade com responsabilidade na prevenção de riscos de corrupção no setor público, ou de outras com competências quer de fiscalização quer sancionatórias, questiona-se a sua efetiva ressonância. Valores como a transparência, a legalidade e a defesa da sã concorrência, desígnios relevantes no Código dos Contratos Públicos (CCP), nas Diretivas Europeias sobre contratação pública e a outros países civilizados, apenas planam sobre a genuína intenção, porém com correspondência prática sofrível, na realidade administrativa portuguesa.
A importância da diminuição do recurso ao ajuste direto na contratação pública é óbvia e visa, em primeira linha, salvaguardar a prossecução do interesse público: evitando-se a discricionariedade da escolha pública, mitiga-se a distorção da concorrência, prevenindo-se a probabilidade de ocorrência de fenómenos de corrupção.
Por outro lado, é sabido que, em larga medida, o insistente recurso a este tipo de procedimento prende-se com a ineficácia e a ineficiência da gestão, nomeadamente ao nível do planeamento. Não será, por outro lado, despiciendo considerar que o investimento na especialização dos profissionais, exigível face à complexa estrutura deste tipo de procedimentos, não tem sido propriamente uma prioridade. E nem se pense, assim sendo, que será a existência de um gestor do contrato (conforme previsto no art.º 290º-A do CCP) que contribuirá significativamente para evitar a integridade dos procedimentos.
No fim do dia, a verdade é que o saldo é pernicioso – mais de metade da população portuguesa (55%), de acordo com os dados do último Eurobarómetro especial sobre a corrupção, de outubro de 2017, considera que os funcionários públicos que adjudicam concursos públicos são corruptíveis (acima dos 43% da média europeia).
Em dezembro de 2017, Portugal aderiu à iniciativa Open Government Partnership, tendo apresentado um plano de ação para 2018-2020 centrado em oito compromissos.
No final de outubro deste ano, foi publicado o primeiro Relatório do Mecanismo Independente de Avaliação daquele Plano, da responsabilidade de um investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
E o alerta surge precisamente no que diz respeito à necessidade de reforço da transparência nesta área da contratação pública. Sobre este compromisso, o oitavo, recomenda-se a implementação de uma Application Programming Interface (API), ou seja, de um instrumento capaz de garantir a transparência e a qualidade dos sistemas de e-procurement em cada etapa do ciclo de compras públicas, como seja – acrescentamos nós – a Open Contracting Data Standard (OCDS). Esta ferramenta foi desenvolvida pela World Wide Web Foundation e compromete-se a tornar mais transparentes os dados relativos à contratação pública, engajando eficazmente governos, administração pública e sociedade civil, sendo já utilizada em países como o Canadá, o Reino Unido ou a Austrália.
Outro enfoque das conclusões daquele Relatório surge relativamente à necessidade de implementação de mecanismos de participação cívica, em especial nas fases iniciais dos procedimentos de contratação pública.
E a este propósito, cumpre recordar Miguel Torga, no seu “Diário XIV”, quando dizia: “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia todo indignado, como e bebe e diverte-se indignado, mas não passa disso. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados.”
Também este velho fado urge contrariar.
Fonte: Síntese Mensal da Contratação Pública/Setembro de 2019 Portal BASE.GOV