José António Moreira, Expresso online (042 23/10/2019)
Aos alunos tinha sido pedido que trouxessem o livro recomendado, sob pena de não terem condições para participar na aula de discussão de casos. Apesar dos insistentes avisos prévios, só cerca de um terço se dotou do referido livro.
No minuto de silêncio incómodo que se seguiu à constatação da falta do material, enquanto o professor pensava numa solução que lhe permitisse ministrar a aula programada, um aluno pediu autorização para usar o telemóvel no acesso aos materiais de estudo na nuvem. Concedida a um, concedida aos restantes. Quase logo, a generalidade dos alunos que não possuía o livro declarou que estava em condições de participar em pleno da aula. À estranheza do professor, um dos alunos explicou que tinham tirado fotos dos casos marcados para a sessão e que, a partir da conta da turma numa das redes sociais, todos podiam aceder às mesmas. O professor engoliu em seco.
Questionou-se, por breves segundos, se deveria discutir com a turma a questão da propriedade intelectual. Optou por o fazer. Sendo a obra em causa de sua autoria, poderia parecer aos alunos que a preleção era motivada por meras razões de natureza económica, associadas aos direitos de autor. Não era isso que o movia. Tomara a decisão por considerar que alunos universitários, de uma escola de referência, deveriam refletir sobre o que significava a cópia não autorizada de propriedade intelectual.
“Quem dos presentes era capaz de ir à minha pasta e roubar-me a carteira, ou o telemóvel?” Ninguém era. “Quem seria capaz de ir à livraria da Faculdade e roubar um livro do escaparate?” Ninguém era. “Quem seria capaz de aceitar um produto roubado por terceiros?” Também ninguém se sentia capaz de o fazer. “No entanto, as vossas respostas são inconsistentes com a vossa atitude. Muitos dos presentes acabaram de me roubar, mesmo estando eu presente.” Silêncio.
Não desconheciam o que eram os direitos de autor de uma obra intelectual, mas não achavam que fosse roubo, ou recetação de artigo roubado, utilizar um ficheiro que estava disponível na “net”. Aliás, um aluno teve mesmo a coragem de lhe dizer que a obra, que aparecera nos escaparates poucas semanas antes, estava integralmente disponível para quem a quisesse usar, algures num “site” de estudantes. Intuía-se, pelo seu tom de voz, ligeiramente desafiante, que a respetiva utilização não merecia qualquer tipo de recriminação, pois “estava na net”. O professor engoliu em seco, mais uma vez.
A situação descrita poderia ser hipotética, mas não é. É real. Mas nem é preciso que alguém a viva na primeira pessoa para ter perceção do roubo indiscriminado de propriedade intelectual. Para os docentes de uma instituição de ensino superior, basta irem à biblioteca e pedirem para consultar as obras recentes que eles próprios recomendaram como leituras obrigatórias nas suas unidades curriculares. Estão esventradas, espalmadas, por terem sido usadas para efeitos de cópia, em fotocopiadora, ou o que vem sendo mais regular e disseminado, com o uso de um telemóvel dotado de câmara. Quanto ao uso das fotocopiadoras, há muitos anos foi instituída uma taxa, cobrada no momento da venda das mesmas, que revertia para os autores, numa tentativa de os compensar, em parte, pelos direitos que lhes seriam subtraídos com o uso desse equipamento. Para os telemóveis, bastante mais perniciosos do que as fotocopiadoras, pela sua capacidade de disseminação alargada do produto roubado, que se saiba, não há idêntica medida, nem se considera deva existir. Com efeito, este tipo de (pequena) criminalidade não deveria ser combatido através da imposição de taxas “cegas”, de eficácia questionável para o caso das obras escritas, e que passam totalmente ao lado dos direitos sobre a música, ou o “software”, para só falar dos mais habitualmente roubados e os que, no conjunto, maior peso têm. Porque se trata de um problema de comportamentos, num dado contexto cultural, a solução deverá passa, sobretudo, pela educação dos cidadãos, pela mudança de tais comportamentos desde a mais tenra idade.
As escolas têm a seu cargo educar as crianças e os jovens, em quase todos os domínios, mesmo naqueles que, supostamente, competiria às famílias assegurar. Ao longo do respetivo percurso académico são inúmeras as unidades curriculares que, variando de nome, se dirigem, genericamente, à “educação para a cidadania”. Não caberiam aqui, de pleno direito, sessões e trabalhos subordinados ao tema da educação para o respeito pela propriedade intelectual de terceiros? Julga-se que sim, por se tratar de uma contributo importante para a formação de Cidadãos (com “C” maiúsculo). Mas, que se conheça, não é tema abordado.
A quem alocar tal falha? Ao Ministério da Educação, que tudo controla, mas parece ter uma agenda política que desvaloriza determinado tipo de temas e empola a importância de outros? Aos docentes, a quem compete ministrar essas unidades, pelo facto de eles próprios não estarem despertos para o problema ou, o que é mais grave, acharem que copiar obra de terceiros, ou usar uma cópia não autorizada que circula na “net”, é unicamente um ato de rebeldia juvenil? Às famílias que, tendo alguma participação na definição do plano curricular das escolas, não pressionam para impor esse tipo de temática, nem tão pouco asseguram, fora da escola, a educação dos seus filhos para o respeito integral por essa propriedade?
Poderia dizer-se que se trata de uma situação em que as culpas são repartidas. Porém, isso seria diluir as responsabilidades e escamotear o facto de que a culpa, em maior grau, pertence às famílias por, de um modo geral, não cultivarem nos seus filhos, desde o berço, esses valores. Quem nunca ouviu, numa qualquer reunião social, pais falarem com orgulho das capacidades dos filhos no uso das ferramentas informáticas e de navegação na “net”, que lhes permitiram “sacar” o filme de Tarantino, acabado de sair, ou os álbuns mais recentes de conhecidos grupos musicais? Pais que, não raras vezes, também são consumidores do produto do roubo perpetrado pelos seus filhos.
Se num desses encontros se questiona tal tipo de atitudes, prontamente são jogados para a discussão (pseudo) argumentos justificativos, onde sempre pontuam variações de três ideias principais: o que está na “net” é de todos e para todos poderem utilizar (mesmo se protegido); um pouco mais sofisticado, os autores e proprietários de tais direitos são muito ricos(roubá-los aparece, pois, como uma moderna versão da atitude do lendário Robin dos Bosques);ou, muito sofisticado, as versões das obras que os seus filhos (ou eles próprios) piratearam, são colocadas na “net” pelos próprios autores como forma de promoção dos seus produtos, para incentivarem ao respetivo consumo.
Estas e outras desculpas podem ser olhadas no contexto de justificações pessoais para ações desonestas. Como refere Donald Cressey, na sua proposta do Triângulo da Fraude, ninguém consegue conviver com a ideia de desonestidade. Por isso, associado a qualquer crime – neste caso, ao roubo – vem sempre a necessidade de racionalização do ato, de adoção de uma desculpa pessoal que o justifique e permita erradicar a sensação de culpa associada.
Transversal a toda a sociedade portuguesa, de modo estruturado e estendendo-se no tempo para as crianças e jovens, há necessidade de educação para a cidadania do respeito pela propriedade intelectual. Há poucos anos, a Sociedade Portuguesa de Autores deu um pequeno passo com visibilidade pública, através de uma campanha televisiva em que o roubo desse tipo de propriedade era colocado em pé de igualdade com o roubo de um outro qualquer bem. Um primeiro passo. Outros são necessários para que, num mundo em grande transformação, onde é crescente a intangibilidade dos bens, os princípios de cidadania que enformam as sociedades organizadas se moldem para incluírem e respeitarem as novas formas de propriedade.