José António Moreira, Expresso online (036 11/09/2019)

As organizações protegem-se contra as fraudes definindo e implementando conjuntos de controlos internos que, idealmente, quando considerados no seu todo, deveriam constituir uma muralha protetora dos respetivos recursos, capaz de os manter ao abrigo da atuação de defraudadores internos e externos.

Porém, nem sempre tal muralha oferece a proteção necessária. Umas vezes porque as organizações não dedicaram o tempo emeios necessários ao respetivo desenho e implementação – tende a acontecer com maior frequência nas organizações de menor dimensão; outras, pese um desenho irrepreensível da muralha, porque a respetiva implementação e manutenção deixam a desejar – se cada “vigilante” não cumprir, em permanência, o papel que lhe está destinado, não há muralha, por mais alta que seja, que possa evitar que o inimigo (defraudador) entre na cidadela.

Atente-se neste último caso. A implementação do controlo interno tem de passar, e geralmente passa, por treinar as pessoas no papel que cada uma tem de desempenhar na defesa dos recursos da organização, por incutir-lhes rotinas que permitam que cada uma desempenhe cabalmente o lugar que lhe cabe na defesa da muralha. Neste domínio, uma insuficiência surge quando a organização, os seus diversos níveis hierárquicos, assumem, ainda que inconscientemente, que feito esse treino inicial, instituídas tais rotinas, elas permanecem ativas e eficazes como quando foram desenhadas e treinadas pela primeira vez.

Erro de perceção, que pode ser fatal. Pese o facto de crescentemente se incluírem nos controlos internos elementos de natureza eletrónica ou digital– supostamente propiciadores de atuações uniformes ao longo do tempo –, o elemento humano, direta ou indiretamente, está sempre presente. Deixando de lado as situações extremas em que pessoas da organização se conluiem para a defraudarem, inviabilizando o funcionamento do sistema de controlo interno, na maior parte das vezes são as relações de amizade, de camaradagem e de confiança entre elas existentes os principais inimigos, aquelas que mais facilmente contribuem para abrir brechas na muralha.

Um exemplo muito recente. Aguardando a minha vez numa das caixas do supermercado, vejo a operadora lançar mão do telefone e lançar aviso sonoro no enorme espaço, clamando pela presença do responsável de loja para efeito de anulação de um produto que, por lapso, fora lançado em duplicado. Tratou-se do procedimento normal, o que muito provavelmente constaria das regras de controlo interno – operações de anulação de movimentos, mais propícias a provocarem dano à organização, deverão ser autorizadas por um superior hierárquico. A anormalidade: a operadora da caixa adjacente, desperta pelo aviso, estende à colega o cartão que permitia efetivar a operação de anulação, com a explicação sucinta de “Toma, ela deixou-o aqui.”A muralha continha uma brecha.

Poder-se-á argumentar, a contrario, que numa equipa relativamente pequena como a do referido supermercado, onde todos se conhecem e comungam de sentimentos de confiança mútua, o procedimento (anómalo) referido não deveria ser visto como uma condicionante da eficácia do sistema de controlo interno da organização. Argumento improcedente, à luz da teoria do Triângulo da Fraude (Cressey, 1953).Os seres humanos não nascem defraudadores. Defraudam quando, sob “pressão”, se defrontam com uma “oportunidade” para levarem a cabo o ato defraudador que, pelo menos momentaneamente, alivia tal pressão, admitindo para si próprios, num ato de “racionalização”, que a atitude que tomam não é um sinónimo de desonestidade, mas o ressarcimento de prejuízos que a organização lhes terá causado ou, simplesmente, que os valores tomados são um empréstimo que em seu tempo será devolvido.

Num caso como o do supermercado, a relação de confiança entre as pessoas da equipa pode ser atropelada porque uma delas está sob pressão – por exemplo, tem dívidas de jogo, problemas financeiros inadiáveis, etc.; a oportunidade, está na disponibilidade do cartão para anular movimentos indevidamente, cujo montante reverteria a favor desse elemento defraudador; a racionalização, subjaz à construção mental do sujeito para eliminar a sensação de desonestidade inerente ao ato.

Há muitos anos, enquanto elemento de uma equipa de auditoria bancária, participei no levantamento de uma fraude de milhares de contos, perpetrada ao longo de cinco anos, que tinha os contornos acabados de referir. Ocorreu numa agência dotada de uma equipa com dezena e meia de pessoas que se consideravam, como elas próprias expressaram, membros de uma família. O cartão para anulação de operações estava no canto da secretária do subgerente, em permanência, ao dispor de quem dele necessitasse; os dois restantes gerentes, a quem competia fazerem inspeções aleatórias regulares aos recursos (valores) da agência, ou não as efetuavam, ou avisavam antecipadamente quando as iam efetuar. Um empregado com funções de caixa, sob extrema pressão financeira e dada a oportunidade existente, foi anulando depósitos recebidos de clientes, que ia posteriormente repondo nas contas por contrapartida de novas anulações, num “roulement” crescente que dificilmente poderia ser revertido. Numa muralha bem desenhada – o sistema de controlo interno do banco –, a brecha surgiu pelo facto de cada um dos elementos da hierarquia não desempenhar adequadamente o papel que lhe estava atribuído na defesa daquela, quiçá movidos pela confiança colocada nos colegas e subordinados. Através de tal brecha, mais tarde ou mais cedo um defraudador poderia entrar na cidadela, como veio a acontecer.

Se uma organização tivesse conhecimento em cada momento das situações de extrema pressão por que passam as pessoas que a constituem, seria fácil criar ou rever procedimentos de controlo que obviassem ao surgimento de oportunidades que permitissem transformar tal pressão em fraude. Como não tem, o evitar brechas na muralha, no sistema de controlo interno, terá de passar, em contínuo, por formação profissional das equipas, reativando as rotinas; por passar a ideia de que o exercício do controlo não significa desconfiar da honestidade de cada um; e por testes de eficácia desse sistema, com caráter temporal aleatório. Tais atitudes nunca eliminarão completamente as referidas brechas, mas limitarão o seu aparecimento e dimensão.