Pedro Moura, Expresso online (035 04/09/2019)
Deixemo-nos de tretas: a fraude é uma consequência natural e normal de qualquer atividade económica que envolva grupos de humanos. Uma definição comummente usada para ‘Fraude’ é a apropriação indevida de um bem ou serviço por parte de um agente.
Mas qual é a real fronteira entre esta definição e um ‘bom negócio’, em que um agente económico consegue adquirir algo pagando menos que o que estaria disposto a pagar,ou vendendo algum bem ou serviço recebendo mais que o que estaria disposto a receber? Um ‘bom negócio’ pode ser considerado fraude? Qual é a linha que separa aqui o devido do indevido? O sentimento de justiça humano? Leis e regulamentos? A moral ou ética pessoal ou social?
A resposta a esta questão não é simples, mas estou certo que não passa simplesmente por mais “ai Jesuses”, medidas, regulamentos ou leis para “Inglês ver”, ou posts em redes sociais do género“cortem-lhes a cabeça”.
O problema real da Fraude é o problema do exagero, do desequilíbrio na normalidade das transações comerciais provocados por alguns agentes económicos com acessos desproporcionados a meios, recursos e influência, que não só lhes permitem a tal apropriação indevida de bens e serviços, mas também lhes garantem não serem ‘apanhados’ ou sancionados, usando essa impunidade como motivador para comportamentos reincidentes.
E para mim é aqui que reside uma das chaves para a mitigação deste problema: os tais “agentes económicos com acessos desproporcionados a meios, recursos e influência” não são geralmente as pessoas ou famílias com salários mínimos, e logo com poucos“acessos”, a cometerem fraude (por muito que racionalmente sejam as que mais causas e razões teriam para o fazer).
A comunicação social tem progressivamente vindo a identificar um grupo difuso de agentes a que chamam (também difusamente) Elites Extrativas. Assim como as bruxas, que las hay, las hay. E estes, como bons agentes económicos que são, só irão abrandar a sua atividade se a tal forem obrigados. Contar com a sua “moral e ética” é conto de fadas para quem infantilmente não sabe que “morais e éticas” há muitas. Geralmente é gente grandiloquente (usam palavras assim) e que tendem a explicitar recorrentemente os seus fortes princípios pessoais e sociais. Elites, em suma.
Resta o “Sistema”, o tal representado pelo Estado, para tentar manter estes fenómenos dentro de limites razoáveis. Com 18,2 mil milhões de Euros estimados de custo com corrupção e fraude para Portugal, relatórios de organismos nacionais e internacionais a indicar uma certa “vagareza’ e ‘ligeireza”no combate à corrupção (aqui, aqui e aqui), e as previsíveis reações do Governo a desvalorizar tais infâmias e a afirmar que ‘não é bem assim’ (aqui e aqui), parece que estamos não só bem para lá de quaisquer limites razoáveis, mas também com pouca vontade de realmente melhorar a situação.
Infelizmente, num país como o nosso, pequeno, macrocéfalo e centralizado, com pouca cultura de participação cívica e índices de endogamia económica e nepotismo pouco saudáveis, as tais Elites Extrativas tendem a confundir-se com Estado, Governo, Sistema Judicial, Empresas, Sindicatos e por aí abaixo. Ou seja, o próprio “Sistema” não tem verdadeiro interesse em melhorar.
O melhor exemplo, que é em si todo um tratado sobre a forma de se estar na política em Portugal vem do mais recente caso das supostas incompatibilidades de governantes com negócios com o Estado, em que o Governo vem pela voz do nosso primeiro-ministro fazer uma ‘dobradinha’ e afirmar que ‘O primeiro-ministro secunda o que disse Augusto Santos Silva quando a polémica apareceu: a lei não deve ser interpretada à letra.’ Claro que não, a ‘vassourada’ seria certamente diluviana se essa suposta lei da incompatibilidades, defendida e votada favoravelmente na altura por António Costa e Rui Rio, fosse efetivamente aplicada.
Ou seja, contar com o Governo, qualquer Governo, para um combate sério a fraude e corrupção? Desculpem, mas as raposas irão sempre comer as galinhas, caso possam.
Resta a Sociedade Civil. Infelizmente o Respeitinho pela Elite Extrativa nunca deixou de estar em alta, e na realidade os portugueses são uns grandes heróis anti-corrupção no café e no Facebook, mas na vida real preferem virar a cabeça para o lado e assobiar, evitando chatices (escrevi sobre isto aqui). Ou seja, rua sem saída também aqui.
Sendo um otimista e gostando de construir soluções, acho que um possível caminho passa pela criação de Estruturas Independentes paralelas ao Estado (Unidades Técnicas, Observatórios, Entidades Fiscalizadoras?), que ajam como entidades de observação, monitorização, fiscalização, estudo, suporte legislativo e até mesmo regulação, com capacidade de relação com entidade estatais, empresariais e com o público em geral (ver como exemplo uma proposta que em tempos fiz aqui).
Estas Estruturas Independentes não poderiam ser “vacuosas”, nomeadas pelo Estado e esvaziadas à partida de capacidades de ação ou influência. Seriam Estruturas que olhariam para os fenómenos da fraude e da corrupção como uma consequência normal, se bem que indesejável, de um sistema capitalista aberto, trabalhando sob uma perspetiva pragmática e de gestão na progressiva prevenção, deteção e punição dos mesmos.
Tais Estruturas deveriam funcionar como parte integrante e fundamental de um sistema efetivo de “Checksand Balances”, limitando a capacidade de “acesso” das Elites Extrativas e complementando (e corrigindo) o papel do Estado e dos cidadãos no combate aos 18,2 mil milhões de euros estimados de desperdício em fraude e corrupção.
Sempre se poderiam baixar uns impostos, melhorar os serviços do Estado e termos uma melhor imagem de nós mesmos enquanto país.