Rute Serra, Expresso online (034 28/08/2019)
Hoje, tal como ontem, permanece certa a conclusão alcançada por El-Rei de Portugal D. Afonso V no século XV, quando a propósito da acumulação de cargos e ofícios públicos, preconizou tal como “muito odioso aos ofícios e muito mais aos povos”.
Não duvidamos que tenha sido por ser muito “odioso aos povos” (isto é, aos cidadãos portugueses) que as matérias relacionadas com as acumulações e incompatibilidades de altos cargos públicos e políticos, na iminência das idas a banhos, após três anos de avanços e recuos descompassados, tardos e em vésperas de eleições, fossem alvo de atenção legislativa. Manifesta-se-nos, contudo, como um mistério insondável, porque motivo se demora uma legislatura inteira a aprovar diplomas fundamentais do Estado de Direito democrático. Não que devam ser aprovados à pressa, mas não é isso precisamente que ocorre neste sprint de fim de legislatura?
E lá se reuniram ensoissadamente os doutos pareceres dos amicus curiae, respigaram-se mais umas moxinifadas daqui e dalém e eis que surge a Lei n.º 52/2019 de 31 de julho que aprova o regime das incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
E sim, já existia desde 1993 legislação muito idêntica, mas cuja interpretação literal levaria ao absurdo (porventura essa velha magia da hermenêutica jurídica), como se ouviu publicamente defender. Em causa não está a bondade do texto anterior, eventualmente manchado de excesso de zelo ao proibir que um cunhado do titular do cargo político estivesse inibido de contratar publicamente, por causa do grau de parentesco. O que realmente sobressai é a existência por mais de vinte anos, de letra morta vertida em legislação, a debilitar gratuitamente a credibilidade dos por ela visados, mas também a dos seus autores. Haveria de ser prestada atenção a legislação vária relativa à administração pública nestas circunstâncias, pois não é este caso único.
Apesar das vicissitudes, tal não dealba dos tempos modernos, pois já as proibições sobre parentesco de oficiais públicos constantes das Ordenações Manuelinas, para que “se evitem alguns inconvenientes” eram amiúde desrespeitadas, tendo chegado até, já no século XVIII, a ser toleradas…
Se quisermos saber ao certo como decorreu o processo legislativo, não será através da consulta da página da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas, em funções desde 2016, disponível no website do Parlamento, que conseguimos. O que digamos, se revela pouco… transparente, precisamente. Assim, aquilo que podemos por hora averiguar resulta do confronto entre os dois textos legais. E o que dali, afinal, sobressai?
Relativamente aos impedimentos (anterior artigo 8º e atual artigo 9º) verifica-se um relaxamento das proibições, o que não significa necessariamente menos transparência. A obrigação de publicitação online da contratação pública efetuada por parentes, com entidades tuteladas pelo ocupante do cargo político ou público, é disso exemplo. Tudo irá depender da eficácia do novo regime sancionatório previsto, que reparte entre o Tribunal Constitucional (TC) e o Ministério Público a responsabilidade para aplicação das sanções e intentar as ações.
O novo regime sancionatório não surge sem um preço, contudo: as obrigações declarativas das pessoas abrangidas pela aplicação desta lei, passam a ser fiscalizadas pela nova Entidade da Transparência, organismo “satélite” a instalar no TC(caso caibam nas instalações), com esta única competência no âmago da sua criação. Livra-se assim aquele tribunal deste odioso inerte. E vistas bem as coisas, dá-se de algum modo razão a quem na discussão plenária da lei de 1993 e face à então novel competência de fiscalizaçãoatribuída ao TC sobre aquelas declarações, acusou o proponente da lei de querer transformar aquele Tribunal numa “polícia das declarações”, “manga de alpaca das declarações”, “julgador das declarações” e… (a meu ver a mais espirituosa expressão) “meirinho ou beleguim dos declarantes”.
Distrações à parte, o que parece evidente é que aos cargos políticos e altos cargos públicos, considerando a responsabilidade derivada da sua ocupação e o relevo social alcançado pelos seus protagonistas, subjaz como fim último a realização do interesse público e o respeito pelo princípio administrativo básico da imparcialidade. E é a defesa disto que não deve admitir mão branda.A definição assertiva da globalidade da legislação correlacionada (como seja a que se refere ao cometimento de crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos), ainda não obtida, incrementará, por seu turno, a essencial confiança que os “povos” têm que manter nos seus dirigentes públicos e políticos.
Sem delongas sobre a oportunidade da publicação da lei, a técnica legística utilizada e as soluções preconizadas, questões que o Observatório de Economia e Gestão de Fraude estará sempre disponível para debater nos fóruns adequados enquanto elemento ativo da sociedade civil, convirá que, em especial, não se venha a revelar mais um nado morto.