Mário Tavares da Silva, Expresso online (033 21/08/2019)
De há muito a esta parte que o exercício de funções por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos é, com elevada probabilidade, o que mais significativas e exigentes restrições comporta no plano da ética e dos bons costumes. E, sobre isso, nada há a apontar, pois não só se compreende que assim seja, como se deseja que assim continue, dado que vale aqui, na sua máxima plenitude, o velho ditado que nos ensina que o exemplo, em primeira linha, deve vir de cima.
Vem esta reflexão a propósito do promissor regime legal, recentemente aprovado, relativo a essas matérias e, concretamente, do problema das ofertas e convites institucionais de que possam beneficiar esses mesmos titulares, quando no exercício dos respetivos cargos.
Não é, reconhece-se, um tema fácil, desde logo para os próprios.
Nesta medida, prevê o novo regime legal que, para além das ofertas institucionais de valor estimado superior a €150 e dos convites que lhes possam ser dirigidos para eventos oficiais ou de entidades públicas nacionais ou estrangeiras, possam ainda esses mesmos titulares, desde que convidados nessa qualidade, aceitar quaisquer outros convites de entidades privadas até ao valor máximo, estimado de €150.
Para tanto, basta que tais convites sejam compatíveis com a natureza institucional ou com a relevância de representação própria do cargo ou que, em alternativa, configurem uma conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes.
Mas se assim é, quem estima o valor das ofertas institucionais, recebidas pelos titulares em causa, no âmbito do exercício do respetivo cargo ou função? Quem oferta ou quem é ofertado? Sendo o ofertado (titular do cargo) a fazê-lo, com que fundamento e segundo que critérios? E devem esses critérios, por seu lado, estar previstos, de forma transparente e acessível a todos, no Código de Conduta da entidade em causa ou, ao invés, ser criados em função da especificidade de cada bem ou serviço ofertado? E não existindo critérios, a estimação do valor será feita “a olho” e de acordo com aquela que for a intuição do titular do cargo presenteado?
São, por conseguinte, múltiplas e de complexidade variável, as dúvidas que o novo regime legal relativo às ofertas institucionais nos suscita. Na realidade, e sendo esse o entendimento a perfilhar, a opção de fazer recair sobre o titular do cargo a obrigação de estimação de um valor para as ofertas e/ou convites de que possa vir a ser beneficiário, revela-se uma via frágil para enquadrar estas situações, pois onera o titular do cargo com uma responsabilidade para a qual ele, em regra, por muito boa vontade que tenha, não estará adequadamente habilitado. Basta imaginar a oferta de um serviço de chá ou de uma caneta de tinta permanente de uma marca desconhecida ou, porque não, de uma singela porcelana, para logo se perceber o quão difícil se pode revelar a tarefa de estimação do valor que a lei exige.
Mais do que o exercício adequado de funções, exige-se aos titulares dos cargos conhecimentos de mercado sobre os potenciais bens e serviços ofertados, o que não nos parece ser, de todo em todo, compatível com aquelas que são as responsabilidades primeiras que a lei defere aos mesmos.
O mesmo sucede aliás, nos casos de convites de entidades privadas a titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, com a exigência de formulação de um juízo de compatibilidade desses mesmos convites com a natureza institucional ou com a relevância de representação própria do cargo ou, ainda, com aquela outra que impõe que tais convites possam configurar uma conduta socialmente adequada e conforme aos bons costumes.
Pois se assim é, quem fará esse juízo de compatibilidade? O titular do cargo destinatário do convite? Se sim, segundo que critérios e sob que condições? E devem esses critérios estar previstos no Código de Conduta de forma geral e abstrata ou, ao invés, ser criados à la carte, de acordo com as idiossincrasias de cada caso?
E o que quererá significar a exigência de que os convites possam configurar condutas socialmente adequadas e conforme aos usos e costumes? E, no caso de ser uma entidade privada estrangeira a ofertar, questiona-se se os usos e costumes que constituem o referencial de ponderação, devem ser os do respetivo país da entidade ofertante ou, ao invés, os do país da entidade pública cujo titular do cargo é presenteado.
É que esta, parecendo uma questão estulta, pode fazer toda a diferença na hora de fazer a contabilidade ética.
Sem desmerecer na solução legislativa encontrada, que constitui, note-se, um importante pontapé de saída para situações de especial complexidade no plano da atuação ética das entidades públicas e dos seus respetivos titulares, parece-nos que a subjetividade com que se pretendeu onerar o titular do cargo na avaliação ética da sua decisão de aceitar ou não uma determinada oferta de bens ou serviços e/ou um determinado convite, constitui um arriscado exercício de harakiri, pois se a um tempo a lei lhe permite aceitar o que lhe é ofertado, a outro faz impender sobre si obrigações de estimação e de ponderação para as quais ele, por muito que se esforce, terá dificuldade em assegurar de forma eticamente imaculada.