António João Maia, Expresso online (015 17/04/2019)
Vimos anteriormente, em A condição Humana - a fraude e a corrupção como retrocessos civilizacionais, que a existência do homem se desenvolve fundamentalmente segundo dois eixos. O biológico, base de toda a vida natural, que nos coloca no mesmo plano dos demais animais e seres vivos com os quais partilhamos este planeta, sobre o qual essa mesma natureza nos tem conferido a invulgar habilidade para erigirmos e sustentarmos o eixo cultural, que no essencial se tem traduzido na capacidade para encontrarmos soluções muito próprias e de elevada elaboração racional e técnica face aos desafios que o mundo nos tem colocado e às formas como a ele nos vamos adaptando.
Vimos também, e sobretudo, que o eixo cultural tem assumido uma dimensão de tal modo importante e central que nos deixa como que mergulhados nele. A dimensão cultural acaba por ser verdadeiramente, para cada um de nós, o “nosso mundo”. O mundo em que nos movimentamos, em que vivemos e convivemos uns com os outros, em que existimos e no qual a nossa vida acontece e adquire todo um contexto, um sentido e uma lógica, enfim, uma normalidade. Esta dimensão envolve-nos de tal modo que parece nada existir fora dela, nem mesmo a nossa natureza animal.
Vimos ainda que esta capacidade para nos afastarmos de um certo determinismo natural é efeito da racionalidade. É ela, a racionalidade, que nos tem permitido construir, partilhar e sustentar, artefactos culturais, símbolos, ideias, noções e visões sobre o mundo. A racionalidade permite-nos construir e sustentar mentalmente o “nosso mundo”. E é nesta dimensão que encontramos noções tão importantes como a ética, a integridade, a cidadania, a civilidade, a honra, a igualdade, a fraternidade e o respeito pelo outro e tantos outros valores que consideramos fundamentais para o são equilíbrio da coexistência coletiva e que se têm construído e sedimentado precisamente a partir das relações de convivência dos indivíduos uns com os outros ao longo das sucessivas gerações.
E será fundamentalmente a partir deste ponto de vista, do modo como se tem processado toda a evolução do ser humano e da sua capacidade para produzir e edificar realidades sociais e culturais próprias e distintas do mundo natural, que a ciência social tem considerado o Homem como o animal social ou cultural. E, sobre este ponto de vista, cremos que o Homem pode ser também considerado como o animal ético.
Na realidade, o plano da racionalidade humana, que inclui o poder para a abstração, remete-nos para o desenvolvimento de capacidades superiores de liberdade e responsabilidade na tomada de opções relativamente ao mundo e a tudo o que nele se encontra. Como refere apropriadamente Fernando Savater, em Ética para um Jovem (Edições D. Quixote, 21ª edição, Lisboa, 2005), “ao contrário de outros seres, vivos ou inanimados, nós, seres humanos, podemos inventar e escolher em parte a nossa forma de vida. Podemos optar pelo que nos parece bom, quer dizer, conveniente para nós, frente ao que nos parece mau e inconveniente. E, como podemos inventar e escolher, podemos enganar-nos, que é uma coisa que não acontece a castores, abelhas e térmitas. Assim, parece prudente estarmos bem atentos ao que fazemos e procurar adquirir um certo saber viver que nos permita acertar. Esse saber viver, ou arte de viver, é aquilo a que se chama ética” (pág. 32), complementando mais adiante que “o que interessa à ética, o que constitui a sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que decorre entre seres humanos. Se não soubermos como arranjar-nos para sobreviver frente aos perigos naturais, perderemos a vida, o que é, de certeza, muito aborrecido; mas se não fizermos ideia do que seja a ética, o que perderemos e desperdiçaremos será a humanidade da nossa vida, e isso, francamente, também não tem graça nenhuma” (pág.101). A ética é assim uma dimensão que remete para a existência de espíritos livres e responsáveis, com capacidade para avaliar contextos e tomar decisões que garantam a concretização das expectativas do que deve ser a vida coletiva. Deste ponto de vista, o Homem é (também e sobretudo) o animal ético!
E foi precisamente a partir desta perspetiva que considerámos, no texto inicialmente mencionado, que todas as ações humanas que se afastem ou divirjam deste quadro, nomeadamente porque coloquem em causa ou contrariem as expectativas acerca do que deve ser a vida coletiva, ou seja do que deve ser a ética e a sua operacionalização, a integridade, que considerámos que as práticas de fraude e de corrupção representam um certo retrocesso na evolução civilizacional. Será nestas circunstâncias, sempre que nos cruzamos ou são publicamente sinalizadas situações de suspeição sobre alegadas ausências de ética e de integridade, como os casos de fraude e corrupção que sistematicamente têm surgido na opinião pública, que nos questionamos se o Homem é efetivamente capaz de assumir plenamente o patamar superior da ética e da integridade. Será o Homem efetivamente o animal ético?
É verdade que o mundo, sobretudo o “mundo do homem”, não é perfeito, nunca foi perfeito, nunca virá a ser perfeito, nem porventura essa alegada e utópica perfeição seria desejável (creio mesmo que não, uma vez que nesse estádio tenderíamos a ficar todos rigorosamente iguais nas nossas avaliações e decisões, uma espécie de autómatos pré-programados e irresponsáveis por ausência de qualquer liberdade de opção, tornando-se a vida por certo numa verdadeira chatice dado o elevado grau de previsibilidade que assumiria).
Todavia acredita-se que toda a ação, individual ou coletiva, formal ou informal, que contribua para limar ou corrigir práticas desajustadas a este nível é seguramente um modo positivo de melhorar os índices de ética e de integridade da sociedade. Por isso todos os instrumentos e medidas de controlo são necessários e importantes. Desde os media, com a sua função natural de trazerem os problemas para a luz do dia e para a agenda social e política, como tem sucedido particularmente nos últimos anos, passando pelas instâncias de controlo e prevenção, até às instituições de repressão, com a sua função mais punitiva, todos devem desenvolver a sua ação no sentido de contribuir para uma sociedade melhor, mais sã e mais justa, onde todos se sintam plenos no usufruto da sua cidadania.
E nós, os cidadãos, organizados em grupos da sociedade civil ou mesmo individualmente, devemos assumir também uma ação neste âmbito.
Nós temos porventura a ação mais importante e meritória de todas! Afinal de contas a ausência de ética e de integridade é em primeira linha uma questão de consciência e de atitude daqueles de nós que praticam atos fraudulentos e de corrupção. Daqueles que colocam os seus interesse próprios acima do interesse de todos, acima do são equilibro social.
Ah, se ao menos fossemos todos capazes de prescindir, um pouco que fosse, dos nossos egoismozinhos, talvez conseguíssemos alcançar uma sociedade com maiores índices de ética e de integridade, onde todos nos sentíssemos melhor connosco próprios e com os outros. Talvez conseguíssemos uma sociedade mais limpa e justa. Mais equilibrada. Talvez…
A finalizar, ocorrem-me as palavras de Almada Negreiros, em A invenção do dia claro (Lisboa, Olisipo, 1921), “quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.