Óscar Afonso, Expresso online (014 12/04/2019)

Há evasão e elisão fiscais quando se usam, respetivamente, meios ilícitos e legais para evitar carga fiscal. Nestes processos e sobretudo quando os valores envolvidos são significativos há atores que importa descrever.

A montagem de certos procedimentos permite às empresas multinacionais baixar custos e evitar o pagamento de impostos nos países onde exercem a atividade económica, com a criação de filiais em países ou territórios com regimes fiscais mais favoráveis – i.e., paraísos fiscais ou offshores explicados por duas palavras: “fuga” porque possibilitam sonegar impostos, fugir a leis penais, à regulação financeira e às obrigações de transparência; “outro lugar” porque o dinheiro acaba “fora do país”. Os lucros das multinacionais são então desviados para as filiais em paraísos fiscais através de esquemas de transações que incluem a manipulação de preços, tendo em vista a legitimação (elisão) da fuga ao pagamento de impostos. De acordo com dados da OCDE, o denominado planeamento fiscal agressivo por parte destas empresas representa um rombo de 10% nas receitas fiscais, sendo que estas empresas pagam, em média, uma taxa efetiva de imposto irrisória que ronda os 6%. O facto destas empresas poderem “levar” os lucros para paraísos fiscais “rouba governos e cidadãos”, ao retirar recursos para o financiamento de “serviços vitais” para a população. As multinacionais são, pois, um dos protagonistas do processo que evita carga fiscal.

O desvio de lucros para locais específicos para consagrar a evasão e a elisão fiscais tende a carecer de serviços especializados prestados por empresas de consultadoria. Muito fruto da globalização, da desregulamentação da economia e do crescente protagonismo das empresas multinacionais, algumas destas empresas foram crescendo de modo que, neste domínio, o mundo passou a ser dominado por um oligopólio formado por quatro empresas enormes – as atualmente denominadas big four – com escritórios em praticamente todo o mundo, com particular destaque nos países com paraísos fiscais. Para além de aconselharem as multinacionais, estas empresas são também especialistas na mediação entre os seus clientes e as autoridades nacionais dos países com paraísos fiscais. São, por isso, o segundo grande grupo de protagonistas.

O conflito de interesses que decorre do simples facto de serem as próprias multinacionais a escolher as empresas de consultadoria a quem pagam para auditar as suas contas não nasceu agora. Recorde-se o episódio de 2002 da Arthur Anderson que ocultou milhões de prejuízos e empolou lucros da Enron, que acabaria por falir e arruinar a vida de milhões de pensionistas. Mas os conflitos de interesses tendem a agravar-se à medida que as big four alargam e diversificam a gama de serviços. Em suma, por um lado, são as big four que prescrevem às multinacionais práticas destinadas a distorcer a realidade contabilística ou financeira e, por outro lado, certificam as suas contas perante a sociedade. São, portanto, a raposa na capoeira.

Os governos são também um dos protagonistas da trama que trama os cidadãos, pois são, conscientemente, responsáveis pelo aparato legislativo que potencia a evasão e a elisão fiscais – nada existe fora do quadro regulamentar ou legislativo dos países. É por ação de governos que os paraísos fiscais emergem com propósito de atrair filiais das multinacionais e legitimar os fluxos financeiros subjacentes ao não pagamento de impostos. Os governos são, pois, responsáveis pelo favorecimento da prática de evasão e elisão fiscais em si, mas também responsáveis pela contradição entre as proclamações de suposta preocupação e a escassez de resultados práticos.

O sistema financeiro é o outro protagonista que falta ao conjunto, pois, é o responsável pelos movimentos financeiros. O cidadão já se habituou às taxas generosamente insignificantes de imposto sobre os lucros dos bancos. Para além do pagamento generoso de impostos, o sistema financeiro aconselha clientes, particulares e empresas, e assegura a manutenção do sigilo bancário, destinado a proteger a identidade dos que fogem ao fisco. Nas últimas décadas, os bancos cresceram até em termos de inovação financeira e internacionalizaram a sua atividade. Nos paraísos fiscais, os bancos encontram um ordenamento jurídico e fiscal que lhes permite, assim como à generalidade das grandes fortunas e das multinacionais, fugir às responsabilidades fiscais nos países onde reside a sua atividade económica.

Em suma, são quatro os protagonistas em todos os escândalos fiscais relevantes – multinacionais, big four, governos e sistema financeiro. Com as inter-relações que estabelecem, fruto da teia de interesses que envolve muitas portas giratórias, determinam os donos da cadeia que cria instrumentos jurídicos destinados a evitar o pagamento de impostos e, simultaneamente, oculta a identidade das entidades beneficiadas. É aos mais afortunados que faz proveito a redução das receitas fiscais por evasão ou elisão fiscais, as quais perpetuam e agravam as desigualdades. A razão levaria a pensar que os mais ricos, que gozam dos benefícios das suas sociedades, deveriam contribuir para uma redistribuição em proveito dos mais pobres, por via dos impostos sobre os lucros. Ora os lucros evaporam-se em territórios paradisíacos para a oligarquia que detém as multinacionais, as big four, o sistema financeiro, e governa e legisla. Trata-se de um roubo organizado em grande escala – ilegítimo e não conforme à ideia de desenvolvimento humano – e que deveria, portanto, financiar os serviços públicos nos países onde a atividade económica foi exercida. De facto, o imposto sobre os rendimentos que escapa ao fisco e, por isso, não é redistribuído para o bem comum permite otimizar o lucro extraído a quem menos precisa e é, no mínimo, ganancioso.

Os paraísos fiscais permitidos pelos governos, para onde se dirigem os lucros das multinacionais através do sistema financeiro e no seguimento do aconselhamento das big four servem então a vários objetivos. Os apoiantes dizem que permitem corrigir as “deficiências” do sistema financeiro internacional, introduzindo maior mobilidade ao capital por eliminar “obstáculos”. Ora os obstáculos são os impostos justos, a regulação financeira e as obrigações de transparência! Apesar do consenso mais ou menos formal sobre a necessidade de combater a evasão e elisão fiscais, pois as receitas fiscais que todos os anos desaparecem nos paraísos fiscais dariam para matar a fome das pessoas nessa condição, tardam medidas efetivas e convincentes que introduzam alguma esperança aos cidadãos cansados e justamente desconfiados. Dada a amplitude do fenómeno e a sua dimensão internacional, é evidente que qualquer solução eficaz passa pelo envolvimento das instituições internacionais.