Rute Serra, Expresso online (016 24/04/2019)

Antes de darmos vivas à recém-aprovada Diretiva Europeia de Proteção de Whistleblowers, votada no Parlamento Europeu no passado dia 16, importa perceber exatamente o contexto nacional e transnacional em que esta medida se desenvolveu e insere, sendo que será aquando da sua transposição que se afinará o tom.

“Temos de proteger aqueles que defendem os interesses da Europa - os denunciantes”, afirmou a relatora da proposta legislativa, Virginie Rozière. “Eles defendem-nos, defendem a democracia europeia e o bem comum”.

Por alturas de celebração da liberdade de expressão, que Portugal conquistou com abril, releva com especial interesse desmistificar quer o cidadão que denuncia, quer o ato de denunciar. A memória recente e ainda dolorosa para muitos, que viram, sentiram e sofreram com a perseguição política perpetrada pela longa manus do regime ditatorial, não permitirá que de ânimo leve se encare o denunciante e a denúncia, livres de conotações negativas.

O certo é que nos dias de hoje, passados que são precisamente 45 anos do fim daqueles que utilizavam a denúncia para acossar outros, expor os que ponham direta ou indiretamente em causa o que conquistámos constitui um reflexo dos princípios democráticos, do exercício da cidadania ativa, da integridade, da transparência e da liberdade.

De acordo com o Report to the Nations da Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) de 2018, 50% da fraude detetada relativa a atos de corrupção, teve origem em denúncias. Em 2017, este valor foi de 40%. O incremento indicia a crescente importância da denúncia na deteção da corrupção, motivo bastante para que se criem, desenvolvam e efetivamente se utilizem, os mecanismos de incentivo e proteção para com os que corajosamente assumam o seu protagonismo.

Corajosamente, sim. O denunciante depara-se amiúde com o dilema entre expor uma ilegalidade e sofrer as consequências ou permanecer em silêncio e compactuar com quem prevarica. E quantas vezes, ultrapassada destemidamente a hesitação, não se vê a braços com processos crime por difamação? Por tudo isto não restam dúvidas da necessidade de proteger quem, por bem, atente-se - por bem, ousa.

O processo legislativo desta Diretiva decorreu durante três anos. Foram muitos os avanços, recuos e a discussão que envolveu, talvez com precedentes escassos, as organizações da sociedade civil, que se bateram afincadamente pela defesa dos seus direitos. Convirá não esquecer que foi também isto que abril nos deu.

Mas quem pode, de acordo com a Diretiva, ser considerado whistleblower? Os trabalhadores. Ou quem lhes facilite o trabalho – a nova figura dos facilitadores - desde que em contexto profissional. A opção legislativa adota uma definição bastante ampla de “trabalhador”, incluindo mesmo aqueles que não iniciaram ainda sequer uma relação laboral, pública ou privada. As infrações devem, contudo, ter sido apreendidas em “contexto profissional” e versar sobre lesões ao interesse público, relativas a determinadas matérias. Estima-se, apenas relativamente à rubrica de contratação pública, que a poupança seja na ordem dos 9,6 mil milhões de euros. Interessante.

Posto isto, não olvide: obteve a informação através da prática de uma infração penal? Distorceu factos que denunciou, aproveitando para “entalar” o colega do lado, que já não suporta? Cuidado, pode ter afastado irremediavelmente a proteção que a Diretiva lhe concederia.

Um breve volver de olhos sobre legislação já existente, faz-nos concluir que diferentes ordenamentos jurídicos encontraram soluções díspares, desde logo sobre o que é considerado, para este efeito, “trabalhador”. O Whistleblower Protection Act dos Estados Unidos da América inclui na definição, antigos funcionários e candidatos a emprego. No Reino Unido, a Public Interest Disclosure Act (PIDA) de 1998, que alterou o Employment Rights Act (ERA) de 1996 (a lei laboral daquele país), alcança um leque amplo da expressão, deixando de fora, porém, voluntários ou candidatos. Já em França, a Lei Sapin II estabelece medidas de proteção de denunciantes, assim considerando qualquer indivíduo que denuncie um crime, ou uma violação de tratado internacional, de lei ou regulamento ou ainda um perigo para o interesse público e o faça em boa fé.

Por cá, temos regras (ainda que sofríveis) desde 2008 (refiro-me à Lei nº 19/2008 de 21 de abril, na redação que lhe foi dada em 2015). Por ali encontramos uma definição de “trabalhador” demasiado restritiva, as “infrações” são entendidas em sentido demasiado amplo e, portanto, passíveis de prejudicar disciplinarmente o denunciante, para além de uma deficiente assertividade normativa no que concerne às medidas de proteção sobre retaliações, o que são tudo razões suficientes de dissuasão do ato de denunciar.

O regime legal português de proteção de testemunhas, não coincide plenamente com as necessidades de quem se propõe denunciar crimes de corrupção, em sentido amplo. Para além do condicionalismo de existência prévia, de risco para a vida ou integridade física/psíquica do denunciante, acresce que para que ocorra a ocultação da identidade do denunciante, temos que estar perante crimes punidos com moldura penal abstrata igual ou superior a oito anos de prisão e por outro lado a lei é omissa relativamente a potenciais efeitos discriminatórios em contexto laboral.

O mecanismo online disponibilizado no site do Ministério Público, “Corrupção: Denuncie aqui”, foi o veículo responsável pela instauração de 292 inquéritos, entre novembro de 2017 e outubro de 2018. Corresponde a 11,4% das denúncias por ali recebidas e analisadas. Não é valor que açule, pelo que uma melhor divulgação das funcionalidades daquele meio, junto da opinião pública, deve ser promovida. São os denominados pela Diretiva “canais abertos de denúncias externas”, com a responsabilidade de diligentemente darem seguimento às denúncias.

O prazo de transposição da Diretiva é de dois anos, ou seja, Portugal tem até abril de 2021 para concluir o processo.

Até lá, se concedermos aos denunciantes apenas uma ilusão de proteção legal, quem, no exercício da sua liberdade, se atreverá?