Pedro Moura, Expresso online (017 02/05/2019)

O presente de Aniversário

Há umas semanas, tendo ido comprar um presente para oferecer no aniversário de um familiar (um miúdo de 7 anos), vi um jogo sobre exploração espacial numa prateleira que me chamou a atenção. Continha naves, planetas, curiosidades científicas, um rol de elementos que despertaram a minha atenção infantil.

Enquanto crescia o Espaço era dos temas coisas que mais gostava. Lembro-me de ver avidamente todas as séries sobre o tema (Galatica, Era Uma Vez o Espaço, Buck Rogers, Ulisses XXI, Espaço 1999, etc) e de devorar todos os livros e enciclopédias a que conseguia deitar mãos.

O Espaço enchia o meu imaginário juvenil e estimulava-me a curiosidade para a descoberta da ciência. Sobretudo, criou em mim um culto pessoal de atração pelo desconhecido e de interrogação permanente sobre grandes questões que ultrapassam largamente a esfera humana, como por exemplo onde está o universo, o que é o tempo ou o nada, ou se estaremos sozinhos nesta grande imensidão. Ainda hoje são questões que me provocam arrepios e me apaixonam. Frente a estas e outras questões cósmicas, confesso ter por vezes pouca paciência para a estupidez humana.

Voltando à narrativa principal, ao ver o tal jogo sobre exploração espacial senti-me naturalmente compelido a escolhê-lo como oferenda ao jovem aniversariante. No entanto, antes de tomar uma decisão destas tento sempre perceber se estou a comprar um presente para outra pessoa, ou se estou a basear a decisão no meu próprio gosto e a ‘comprar para mim’. E sim, estava. Perguntando-me se o meu primo iria gostar do presente, olhei para o lado e vi um jogo similar mas em que o tema era a geografia, países, etc. E disse para quem ia comigo algo como ‘acho melhor levar o jogo da geografia, pois os putos hoje em dia já não acham graça às coisas do Espaço como nós achávamos’. E assim fiz, foi a geografia a eleita.

Ora, geografia é um tema interessante, mas... o Espaço é o Espaço. É o limite, a fronteira, o enorme desconhecido. Na altura tudo isto me passou, mas por alguma razão esta questão do menor interesse da miudagem de hoje pelas coisas extraterrenas ficou a cozinhar em lume brando dentro da minha mente.

O filme

Dias mais tarde, indo de viagem longa, decidi rever um filme de que gostei muito: o Interstellar. É um filme fabuloso, com uma estória inspiradora e pormenores técnicos fabulosos, tendo tido suporte científico de um físico teórico estabelecido (Kip Thorne), o que o torna imensamente realista. A estória resumida é que o Planeta Terra se está a tornar inabitável, e a NASA (na altura uma entidade escondida do público que não via com bons olhos gastar-se dinheiro com exploração espacial) leva a cabo uma série de missões com vista à descoberta de outros mundos onde a civilização humana pudesse renascer. Uma das citações do filme que mais me ficou foi a do personagem principal (Cooper) ao dizer “It’s like we’ve forgotten who we are. Explorers, pioneers, not caretakers… We’re not meant to save the world. We’re meant to leave it.”

A moral do filme anda muito à volta do confronto entre uma atitude de cuidado pelo que existe e se conhece (ficarem-se pela Terra e aceitarem o final, serem ‘caretakers’), e uma atitude de exploração e descoberta do desconhecido em busca de uma situação desconhecida (irem em busca de novos mundos ou possibilidades, serem ‘explorers’).

Mais uma vez este tema do Espaço voltou a encher os meus pensamentos, pois encontrei fortes ressonâncias entre os temas deste filme e algumas perspetivas pessoais sobre o mundo como ele é hoje em dia.

 

A reflexão

Acho que há falta de paixão pelo desconhecido hoje em dia. A isto chama-se conformismo. Mas é um conformismo mascarado, pois o dia-a-dia das pessoas é marcado por ansiedade, temor, tristeza, medo. A vida sabe a algo azedo mas anestésico. Embalados por esse imenso mundo que são os ecrãs sobre os quais vivemos, entretidos com tudo menos o importante, nem notamos no encarquilhamento mental que sofremos. Quando a nossa preocupação é a manutenção da nossa posição imediata, a satisfação instantânea e o conforto sem condições, o que se está a dar em troca é a liberdade pessoal e a capacidade, a coragem de olhar para lá do horizonte do ecrã e ver que há mundo, há universo.

Custa-me conceber um mundo cheio de gente conformada, pois não concebo viver num mundo sem liberdade, sem sonhos, sem vontade de desafio. Sem Espaço.

Talvez a maioria de nós devamos ser ‘caretakers’, mas não podemos nunca deixar de ter ‘explorers’ (ou de sermos todos também um pouco ‘explorers’, sob pena de sucumbirmos às nossas tendências para a mesquinhez, o imobilismo e a vassalagem.

Quem é escravo geralmente disfarça essa realidade com ilusões e berloques (mentais e materiais) para se convencer do contrário, mas não deixa de ser escravo, vive num Espaço que começa no seu umbigo e acaba no umbigo dos seus mestres, proibido sequer de pensar que há algo para lá desses parcos horizontes. O pior escravo é o que se acha livre (o que me trouxe à cabeça as recentes comemorações do 25 de Abril, mas não sigamos por aí).

Foi sempre através da paixão pelo desconhecido que a raça humana evoluiu. A ousadia e a coragem são necessárias à vida em liberdade, à existência de um futuro. Para se ser livre tem-se de ter a noção que não somos nunca totalmente livres, pois há sempre algo que desconhecemos. E tem de se querer dobrar esse desconhecido, sempre.

Por isto tudo, provavelmente na próxima ocasião oferecerei o jogo do Espaço, e não da Geografia.