Rute Serra, Expresso online (009 06/03/2019)

Não defraudar a confiança dos cidadãos numa verdadeira polis transnacional europeia, gerida por instituições fidedignas, será talvez o maior desafio que se coloca a quem se apresentará a votos, em maio próximo. Isto porque uma análise perfunctória pelos resultados dos sufrágios dos últimos anos para o Parlamento europeu, revela sobre aqueles um constante pairar de cirrus – a elevada taxa de abstenção.

Importa assim perceber que o contexto em que as futuras eleições se irão processar é muito diferente de há cinco anos. Para quem já nasceu num contexto de União Europeia, a perceção da fragilidade da democracia será talvez ténue. Mas para quem, de modo atento, assiste à evanescência do projeto europeu, através do recrudescimento de políticas e intenções xenófobas, racistas e populistas, das quais não havia tão impressiva memória desde a Segunda Guerra Mundial, a preocupação é outra.

O adensar da neblina introduzido pelo Brexit, em especial na contingência de um no-deal, incrementa a desconfiança, precisamente aquela que devíamos estar empenhados em estancar. E que este processo cria ensejos aos defraudadores, não restem também dúvidas. Sem o desiderato de fornecer aqui qualquer instrumento útil àqueles, o que não seria aliás possível, porque a sua imaginação é, nessa matéria, infinitamente superior à minha, vejamos:

Brechas e confusão nos processos legislativos e regulamentares podem surgir como oportunidades para os defraudadores. Destes, aqueles que possuírem informação privilegiada, porque atuantes em contextos adequados, perceberão rapidamente o azo. Um decréscimo de regulamentação relativo às práticas comerciais será tentador, porque eventualmente incrementador de mais elevados retornos.

Por outro lado, os investidores e as empresas, procurarão manter o pé em ambos os territórios, o que poderá potenciar deturpações relativamente aos níveis de acesso aos mercados. O perigo espreita nas estratégias de concessão de benefícios fiscais ou políticas de financiamento, que poderão potenciar o risco de fraude nos fluxos da receita futura, lucros ou ativos, com o fito, por exemplo, de obter reforços de capital.  Também não será utópico pensar que, com destreza, se desenvolverão mecanismos potenciadores da fraude fiscal e aduaneira. A necessidade que as empresas constatarão, de reformulação das suas operações, pode introduzir ameaças sérias à estabilidade do emprego, o que provocará erosão na consciência moral e ética dos funcionários, conduzindo a possíveis incrementos de má conduta.

A realocação de recursos das empresas gerará terreno fértil para desvios de fundos, como sejam as alterações de dados bancários para pagamentos futuros, adequadas às novas operações administrativas com o exterior.

E as pessoas? Aquelas que, sendo cidadãs europeias, contruíram as suas vidas no Reino Unido? Sem uma política estabilizada ao nível da concessão de vistos de residência, a possibilidade de ocorrerem fraudes relacionadas com estes processos, aumenta expressivamente, hipotecando-se assim legítimas expetativas de quem procurou uma vida melhor.

A resposta mais eficaz no combate ao crime organizado e às elevadas quantias “lavadas” para o financiar, tem passado por uma competente concertação de esforços das polícias nacionais de cada Estado membro. O Brexit moverá o Reino Unido na direção oposta, enfraquecendo-o na peleja contra transações ilícitas, o que constituirá fator de atração para os criminosos, que gravitam habitualmente em torno de fraquezas estruturais. A saída já admitida, do país, da Europol, isolá-lo-á em exerção provavelmente insipiente, pois deixará desde logo de ter acesso ao sistema de informação europeu, gerido por aquela agência e fundamental na investigação do crime transnacional.

Estes imponderáveis impregnados de volatilidade exigirão uma estratégia eficaz de gestão do risco. Ter-se-ão os envolvidos lembrado disso? No impacto que estas ocorrências podem ter na qualidade de vida dos europeus?

A desestabilização criada pela mais recente declaração de Theresa May, no Parlamento britânico – alargar o prazo para assinatura do acordo, até depois das eleições europeias – é para lá de estapafúrdia, pois para além das implicações diretas nos assentos parlamentares europeus, entretanto já realocados, legitimando a, eventualmente efémera, tomada de posse de 73 eurodeputados do Reino Unido, cria um ambiente de ficção, não só a custar alguns milhares de libras ao erário público, como a constranger os candidatos perante os cidadãos eleitores. Lá está um excelente exemplo do que dinamita irreversivelmente a confiança dos eleitores.

Como a tecnocracia europeia, acicatada pela ousadia britânica e imbuída da síndrome de húbris, irá lidar com este desafio, veremos. Se o Reino Unido aprenderá definitivamente a falar europeu, também. Se nos valerá a velha aliança luso-britânica, restam dúvidas.

No final do dia, é tão só a credibilidade de todas as instituições que estará sob escrutínio.