António João Maia, Expresso online (010 14/03/2019)
Em certo sentido e como tem sido evidenciado pela ciência, particularmente pela ciência social, podemos considerar que a vida humana se desenvolve fundamentalmente em torno de dois grandes eixos, o biológico e o social ou cultural.
O primeiro, o biológico, que sustenta o segundo (e que, bem vistas as coisas, é o pilar basilar de toda a vida tal como a conhecemos), diz-nos que somos animais e que, tal como todos os outros com os quais partilhamos este planeta, temos necessidades básicas de sobrevivência como sejam a respiração, a alimentação, a defesa, a proteção e até a própria procriação.
E o segundo, o social ou cultural, que corre sobre o primeiro, que nos mostra as invulgares capacidades que a nossa espécie tem para se adaptar e até para moldar ao seu jeito, de uma forma muito particular, o mundo que habita. Esta segunda dimensão, que os antropólogos tendem a catalogar como a dos artefactos culturais, adquire uma expressão a tal ponto importante que nos deixa como que mergulhados nela, fazendo-nos praticamente esquecer a nossa raiz animal.
Vivemos, por assim dizer, num mundo artificial criado por nós próprios em função dos nossos interesses conjuntos, na tranquilidade dos nossos espaços urbanos, na segurança dos nossos apartamentos, com os mais modernos aparelhos de climatização e rodeados de equipamentos de diversão e entretenimento, de comunicação e de transporte, num mundo que, pelo menos para alguns, estará muito próximo da perfeição. É claro que a realidade não é assim tão “cor-de-rosa” para todos, e aí estão as assimetrias sociais a prová-lo em todas as latitudes. Mas, para o efeito desta reflexão, basta-nos assumir o significado de conformidade relativamente ao que esta dimensão social ou cultural representa para todos e cada um de nós no nosso quotidiano.
Ela representará pelo menos que existe um conjunto de estruturas sociais que foram sendo criadas e atualizadas ao longo da história pelas sucessivas gerações e que agora nos aliviam de temos de andar diariamente à caça, em busca de alimentos ou de água, ou de nos termos de refugiar de predadores ou de intempéries em abrigos improvisados, como faziam os nossos antepassados há milhares de anos e como continuam a fazer os outros animais que coabitam connosco o mesmo território.
É precisamente sobre estas duas dimensões e o modo como elas estão interligadas que nos fala Roger Scruton em A Natureza Humana (ed. Gradiva, 2017). No texto, o autor começa por nos recordar essa nossa natureza biológica, de seres animais, com necessidades elementares muito básicas, tão semelhante a todos os outros, às quais se tem associado uma determinada herança genética, cujo desenvolvimento e aprofundamento ao longo das sucessivas gerações parece explicar as capacidades cognitivas ímpares de que somos dotados. E são estas capacidades que nos têm permitido a construção e partilha de todo um universo muito próprio que, para lá dos artefactos mundanos que todos conhecemos, nos conferem também e sobretudo uma capacidade de abstração, de criação e partilha de símbolos e códigos linguísticos, da moral, do bem e do mal e da própria dimensão do sagrado. Enfim, de uma certa coerência do mundo construída e partilhada pela nossa razão e à sua medida.
Confesso que não simpatizo particularmente com a catalogação que todos conhecemos dos bancos da escola, de que somos animais racionais (simplesmente porque, ainda que instintivamente, todos os animais parecem obedecer de alguma forma a indicações que lhe hão-de vir do cérebro, mais do que de qualquer outro órgão, e se baseiam pelo menos nos instintos de sobrevivência e em experiências anteriores), mas creio que seja esta capacidade para criarmos e partilharmos o nosso próprio mundo a grande razão para nos definirmos como animais racionais.
Um outro autor sobejamente conhecido, o Antropólogo Claude Lévi-Strauss, em Raça e história (ed. Veja, 2003), mostra-nos que a diversidade dos modelos de desenvolvimento cultural do homem, ou seja os modos como os grupos humanos têm superado desafios semelhantes em diferentes espaços e circunstâncias distintas, parecem ser mais fruto dessas mesmas circunstâncias de contexto do que de maiores ou menores capacidades intelectuais ou racionais dos sujeitos ou deste ou daquele grupo.
Esta constatação permite perceber um pouco melhor a razão pela qual a dimensão social e cultural da existência humana tende a adquirir para cada um de nós um lugar central e a sobrepor-se à dimensão biológica. Afinal de contas, para cada indivíduo, integrado no seu grupo de pertença, na sua sociedade, com as referências culturais que a caraterizam, o mundo e os objetos que o compõem tendem a formar um todo que se explica de forma coerente, e que, no essencial, traduz o modo de adaptação que foi sendo construído e partilhado por esse mesmo grupo ao longo das sucessivas gerações em resultado da superação dos desafios que lhe foram sendo colocados.
Uma terceira referência que queremos abordar nesta reflexão, agora já claramente no âmbito da dimensão social ou cultural da vida humana, prende-se com o processo de partilha e transmissão da herança cultural entre as sucessivas gerações no seio de uma mesma sociedade. É através deste processo que se sedimentam os artefactos culturais, que adquirem sentido e são contextualizadas as soluções encontradas para superar cada nova questão colocada à sociedade. Enfim, é através deste processo que a herança cultural adquire um sentido e uma coerência próprias e que é passível de ser incrementada.
Um dos autores que se dedicou ao estudo deste processo foi Jack Goddy, que, em Domesticação do pensamento selvagem (ed. Presença, 1988), nos diz que um dos elementos-chave que permitiu o estabelecimento de processos de partilha e sistematização de quadros de herança cultural reside na capacidade do ser humano para criar e partilhar a linguagem, primeiro oralizada e posteriormente oralizada e escrita. Foi esta capacidade para criar, partilhar e reconhecer um conjunto de símbolos, associados a objetos e depois a ideias, gradualmente mais abstratas, e de comunicar através deles, que permitiu e continua a permitir aprofundar as relações sociais entre os indivíduos.
Nesta altura é o leitor deste texto bem capaz de já se ter questionado sobre em que me medida é que tudo isto se relaciona com a fraude e a corrupção que leu no título?
É o que procurarei explicar no encerramento da reflexão.
Até aqui verificámos como o homem foi sendo gradualmente capaz de se ir afastando de um certo determinismo biológico e de edificar sobre ele o seu próprio mundo. A sua própria realidade. Uma realidade feita de artefactos culturais, criados, sustentados e partilhados de forma coerente por todos os membros da sociedade.
E é nesta realidade, assim partilhada e vivenciada por todos, que encontramos noções tão importantes como a civilidade, a cidadania, a ética, a integridade, a honra, o respeito pelo outro e todos os valores que consideramos importantes para a manutenção da coexistência e da cooperação e para continuarmos a sentir que essa coexistência faz sentido e que, por isso, continua a fazer sentido lutar pela sua manutenção.
Deste ponto de vista, todas as ações que divirjam deste quadro, nomeadamente a fraude e a corrupção, na medida em que o contrariam gravemente e colocam em causa, representam, relativamente àqueles que as praticam, retrocessos na evolução civilizacional.