José António Moreira, Expresso online (012 27/03/2019)

Quem vive de perto as problemáticas contabilísticas tem de conviver com as frequentes críticas à flexibilidade exagerada permitida pelas respetivas normas. É um facto que essa flexibilidade existe e, por vezes, tende a ser utilizada para fins menos nobres. Veja-se o caso do Montepio Geral Associação Mutualista (MGAM) e da respetiva informação financeira.

Nos últimos anos, por razões várias, umas do lado dos rendimentos, outras do dos gastos, o desempenho da instituição tem-se traduzido em resultados negativos regulares. Por exemplo, em 2016, ajustando o resultado líquido do período de um rendimento extraordinário, não repetível, de 46 milhões de euros, gerado na venda de prédios à sua subsidiária Caixa Económica Montepio Geral (!), tal resultado aproxima-se dos 40 milhões de prejuízo.

Nas contas de 2017, inopinadamente, esse mesmo resultado salta para um lucro de cerca de 590 milhões, embora o resultado operacional seja de apenas 9 milhões (ver tabela; construção própria, a partir dos relatórios e contas não consolidados). Não fora a consideração de uma componente denominada “imposto diferido”, no montante de 808 milhões, e o prejuízo nesse ano teria sido de 220 milhões. Em escala mais modesta, no ano de 2018, excluída a referida componente, o resultado teria sido negativo de cerca de 6,5 milhões de euros.

2018

2017

2016 ajustado

Resultado operacional

-6 139

9 021

-30 639

Imparidades

-174

-217 512

-7 401

Resultado antes de impostos

-6 579

-220 977

-38 640

Imposto diferido

8 404

808 624

0

Resultado líquido

1 634

587 554

-38 640

Ativos por impostos diferidos (AID)

816 770

805 159

AID associados a prejuízos fiscais

67 206

202 261

Nº de associados

612 607

625 419

632 477

Essa componente “milagrosa”, que para um leigo na matéria poderá parecer alquimia que transforma prejuízos em lucros, necessita de uma pequena explicação técnica, para que se perceba a razão de ser e os riscos que estão subjacentes aos impostos diferidos.

O balanço de uma organização deverá refletir todos os seus bens, direitos e responsabilidades, não só presentes como futuras. Parece lógico que assim seja. Quanto aos direitos e responsabilidades presentes, alicerçadas em contratos e ou documentos originados nas relações com terceiras partes, são fáceis de justificar e estão calculadas à partida; são mais problemáticos, em termos de estimação e justificação, os direitos e responsabilidades futuros, pois assentam em estimativas que têm por base pressupostos e subjetividade. Pense-se no caso das imparidades, as estimativas de perdas futuras contabilizadas no presente como gasto, cujo montante depende da avaliação que se faça dessas perdas. Os impostos diferidos não beneficiam de tanta flexibilidade na estimação. A respetiva flexibilidade está, sobretudo, no momento e montante do respetivo (des)reconhecimento.

Na relação com o Estado, no domínio fiscal, as organizações defrontam-se com regras fiscais que, nem sempre, são coincidentes com as regras contabilísticas. Por exemplo, no caso da MGAM, as provisões técnicas (matemáticas) que constitui quando recebe aplicações de associados, destinadas a fazer face aos encargos futuros com tais aplicações, não são fiscalmente consideradas como gasto fiscal no momento da constituição, mas sê-lo-ão no futuro, quando forem utilizadas para o efeito que esteve na sua origem. Neste contexto, no momento inicial, a organização passa a deter um direito sobre o Estado, no montante da poupança de imposto que no futuro ocorrerá, quando utilizar tais provisões. De idêntico modo, a existência de prejuízos no presente dá direito a deduzi-los a lucros futuros, poupando então no imposto a pagar. Para relevar estes direitos no balanço, no Ativo, a organização utiliza a conta “Ativos por impostos diferidos”, que no ano de 2018 tinha um saldo de cerca de 816 milhões de euros. A contrapartida desta conta, no momento do registo, é geralmente um imposto “negativo” (imposto diferido ativo) inscrito na demonstração dos resultados, que pode permitir o dito “milagre” de transformar prejuízos em lucros, como aconteceu nos dois anos mais recentes.

O que há de mal no mecanismo descrito?! Nada! É linear, teoricamente defensável, imprescindível para que um balanço reflita adequadamente os bens e direitos. As limitações do mesmo estão relacionadas com o modo de aplicação, passível de ser usado para condicionar a avaliação do utilizador da informação financeira.

No caso concreto da MGAM eis os principais “problemas”:

  1. A organização, pela natureza da sua atividade, estava isenta de imposto sobre o rendimento (IRC). O que fez em 2017? Como só as organizações que pagam IRC podem contabilizar impostos diferidos, a MGAM arranjou um artifício para eliminar essa isenção e assim poder utilizar o mecanismo. Objetivo, mostrar uma situação económica e financeira mais agradável ao olhar (criatividade contabilística). Na essência, nada mudou quanto à sua débil situação económica;
  2. Os AID só podem ser registados quando houver uma quase certeza de que a organização venha a gerar, num prazo finito, lucros futuros suficientes para absorver o direito que se constitui. No caso dos AID associados a prejuízos de períodos anteriores, esse prazo de validade, desde que gerados em 2017 e seguintes, é de cinco anos. Aqui reside o mais “bicudo” dos problemas: será de esperar que uma organização que tem vindo a apresentar prejuízos de modo sistemático passe a gerar lucros em montante suficiente para a dimensão dos AID registados? Não se afigura credível, de todo, que tal venha a acontecer;
  • No que respeita ao nevrálgico ponto precedente, a certificação dos auditores (KPMG) deixa muito a desejar. Era suposto que caucionassem essa evolução futura. Não o fazem, direcionando o utilizador da informação para as previsões de resultados da administração da MGAM. Do seu parecer: “… cuja recuperabilidade [os AID] depende da verificação dos pressupostos assumidos nas demonstrações financeiras previsionais aprovadas pelo Conselho de Administração.” Fica a sensação, desagradável, de uma tentativa de não comprometimento por parte dos auditores. Mau sinal;
  1. A MGAM não constituiu a totalidade dos AID que poderia ter registado. Ainda tem folga para aumentar o respetivo montante. É, pois, provável que nos próximos anos se vá assistindo à utilização do mecanismo para ir mostrando lucros, procurando colmatar o deficiente desempenho económico. Veja-se que em 2018, apesar da reversão (anulação) de cerca de 130 milhões de AID relacionados com prejuízos fiscais, o montante total desses impostos foi positivo, por via da utilização dessa espécie de reserva de AID.

Enfim. Mais perigoso do que esta descarada criatividade contabilística, passível de ser apreendida por quem queira dedicar um pouco do seu tempo a ler os relatórios da MGAM, é o efeito de distração que ela pode gerar nos associados (o que parece ter acontecido), nas autoridades supervisoras e no Governo, ofuscando as reais dificuldades da organização e a necessidade de atuação específica para acautelar males maiores no futuro. Porque se estes se concretizarem não haverá, então, criatividade que valha