Pedro Moura, Expresso online (011 20/03/2019)
A minha anterior crónica (https://expresso.pt/opiniao/2019-02-07-Corrupcao-ativa) foi dedicada à ‘corrupção ativa’, ou sejam aquela em que há um esforço concreto e dirigido à apropriação indevida de bens e recursos por parte de alguém.
Neste texto abordo o tema da ‘corrupção passiva’, caracterizada sobretudo pelas atitudes de ‘olhar para o lado’ e pela inação praticadas por pessoas relativamente a situações que conheçam ou vivenciem de fraude, corrupção, ou tão somente negligência.
Se a ‘corrupção ativa’ tende a ser apanágio sobretudo de indivíduos com algum nível de poder (os ‘profissionais’), a ‘corrupção passiva’ assume-se sobretudo como um fenómeno de massas, que endemicamente é praticado pelo grosso da população sem que muitas vezes haja sequer uma perceção real do ato de cumplicidade negativa em que estão a incorrer.
Com efeito, em artigo anterior (“Treta de Corrupção”, publicado na Visão Online em http://visao.sapo.pt/opiniao/silnciodafraude/2019-01-31-Treta-de-corrupcao) dava conta de um curioso fenómeno que se vive em Portugal. De acordo com um estudo da autoria da Transparência Internacional sobre perceções sociais relacionadas com corrupção, entre vários congéneres europeus Portugal é o 2º país com maior taxa de resposta afirmativa à questão ‘Se eu testemunhasse um ato de corrupção, sentir-me-ia pessoalmente obrigado a denunciá-lo?’. 88% dos inquiridos responderam um perentório ‘Sim’ a esta questão.
Julgar-se-ia então que cada Português se sente (e age como) um campeão da luta contra a corrupção. E, no entanto, a realidade vivida por todos diariamente neste nosso canto do mundo encarrega-se de demonstrar quão errada esta ideia está. Pior: quão grande é a ilusão coletiva dos portugueses relativamente ao seu comportamento cívico perante estas matérias. Dir-se-ia uma espécie de heróis virtuais, mas muito pouco virtuosos.
O ‘povo sereno’ aceita de bom grado e sem grande contrariedade situações claras de comportamentos contrários ao bem comum e individual.
É extenso o rol de situações em que o comportamento por omissão da esmagadora maioria passa pelo ‘calar-se’ ou ‘olhar para o lado’: abusos de posição e poder, negligências grosseiras, pequenas e grandes falcatruas, uso e abuso indevido de meios e recursos alheios, apropriação ‘hierárquica’ de propriedade intelectual, chantagem profissional, plágio, favorecimentos, ‘cunhas’, subornos, não cumprimento de deveres profissionais ou de cidadão, etc, etc.
Perante tudo isto, nós, portugueses, calamo-nos quando achamos que nos dá jeito, sobretudo para não nos ‘chatearmos’, e quando pressentimos que podemos potencialmente arranjar ‘problemas’ por tomarmos alguma atitude mais vertical perante uma situação ou pessoa que está claramente em falta. Demonstramos um conveniente ‘respeitinho’ por toda a aventesma que se consiga arrogar a um estatuto mínimo de ‘autoridade’, praticando o tão aconselhado ‘baixar as orelhas’. Exibimos uma enorme capacidade de adaptação às mais variadas situações anómalas, o tão conhecido ‘primeiro estranha-se, depois entranha-se’.
Destes padrões comportamentais surgem, entretanto, outras duas muito típicas ‘portuguesices’. A primeira, o ‘dizer-mal’, despejando por família, amigos e colegas, em casa, cafés e Facebook a amarga bílis oriunda do despeito que se teve que sofrer em tal situação às mãos de tal e tal cavalgadura, seguido da magna declaração de que ‘se pudessem’ não sabiam o que fariam e aconteceriam (a típica covardia mascarada de valentia).
A segunda, a aprendizagem de como vencer na vida real em Portugal. Se é a cavalgadura que ‘se safa’, e se a cavalgadura pratica impunentemente comportamentos condenáveis, tem-se, por um raciocínio logicamente válido, que os comportamentos condenáveis são os que ‘safam’ e levam ao sucesso.
Como a nossa cultura cívica é sobretudo baseada no ‘respeitinho’ por cavalgaduras e não no respeito real por si e pelos outros, é fácil de ver como nos transformamos e mantemos um país de ‘cavalgaduras’ ou aspirantes a tal. Faz lembrar aqueles caloiros que tendo sofrido sevícias sádicas e estúpidas às mãos dos veteranos, quando se apanham no 2º ano fazem o mesmo ou pior aos novos caloiros. Complexo de inferioridade?
As grandes burlas e corrupções, geralmente feitas por elites, são extremamente prejudiciais a Portugal e aos portugueses. Mas são o reflexo de uma cultura de covardia, ignorância e permissividade estruturais que cria um pântano generalizado impeditivo de uma sociedade mais transparente, justa e meritocrática. As elites ‘profissionais’ da ‘corrupção ativa’ vingam neste pântano. É caso para dizer que temos os líderes, governantes e corruptos que merecemos.
Enquanto a maioria de nós, cidadãos, continuar a fazer parte da ‘corrupção passiva’, enquanto não assumirmos a responsabilidade pelo que se passa diariamente à nossa frente, enquanto não ousarmos dizer ‘não’, enquanto cada um olhar mais para o seu umbigo que para o que o rodeia, enquanto cada um persistir em deixar para amanhã ser uma melhor pessoa e melhor cidadão, será neste pântano que todos viveremos.