Rute Serra, Expresso online (004 31/01/2019)

De há uma vintena de anos a esta parte, a academia tem envidado esforços, na tentativa de comprovar cientificamente o facto de as mulheres serem intrinsecamente menos corruptas do que os homens.

Desde que Gottfredson e Hirschi, em A General Theory of Crime concluíram que as mulheres são menos propensas ao cometimento de crime que um novo campo de pesquisa, relacionado com corrupção e género, se perfilou no horizonte.

Os três mais significativos estudos comportamentais desde então realizados, o último em 2018, publicado no Journal of Economic Behavior & Organization, concluem em síntese que em situações hipotéticas, as mulheres são menos propensas a tolerar a corrupção; a gestão exercida no feminino tende a evitar envolvimento significativo em práticas de suborno e que países com maior representatividade de mulheres na governação e no mercado de trabalho apresentam níveis menores de corrupção. Porém, a aceitação destas asserções pela comunidade académica não tem sido pacífica, soando vozes de discordância, por exemplo, quanto à utilização de bases de dados exógenas, como metodologia de estudo.

Não obstante alguma dissidência no interior da academia, a tendência de comprovar o comportamento menos corrupto das mulheres trilha com êxito o seu caminho. Ancoradas nestes estudos, várias instituições internacionais produzem recomendações alinhadas com as conclusões ali alcançadas. Exemplo paradigmático é o Report to the Nations 2018, da Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) que há semelhança de anos anteriores continua a detetar que cerca de 70% dos casos de corrupção no mundo, vestem de azul.

Independentemente da acuidade dos instrumentos científicos utilizados e das interpretações encontradas, a verdade é que a controvérsia do tema passou a marcar presença na ordem do dia. Está criado o mito que destrói a crença em “meninos na esfera pública”, “meninas na esfera privada”. Será este o momento da política do desvelo, em detrimento da política de interesses?

Porque soam todas as sirenes sobre o tema importará talvez incluir o conhecimento já alcançado, nas mais modernas estratégias anticorrupção.

É certo que a definição de “género” implica a análise de um conceito social complexo. Já a utilização da palavra “sexo”, que tem em conta um conceito de simples divisão binária biológica, facilitaria a discussão. Também é verdade que a noção de corrupção possui uma natureza clandestina que dificulta métricas rigorosas, apesar de em Portugal estar estimada em 18,2 mil milhões de euros, o equivalente a 7,9% do Produto Interno Bruto.

Por outro lado, não será despiciendo considerar que o estado de desenvolvimento civilizacional e os regimes políticos dos países podem influenciar as asseverações sustentadas. Mas não terá sido a criação deste mito que tem mantido, afinal, neste mundo varonil, as mulheres afastadas dos centros de poder e decisão? Paradoxal? Talvez não. Mais do que a valoração das diferenças entre sexos, na cruzada contra a corrupção será eventualmente preferível encontrar mecanismos de esbatimento de desigualdades ao nível da democracia dos regimes, de fomento de cultura política e de incremento da accountability. Não obstante,

A psicologia há muito que explica que as mulheres são mais sensíveis ao risco e menos permeáveis a influências externas, quando em posições de liderança. A corrupção sexual, expressão que visa definir as situações de exposição feminina a pressões de cariz sexual, impulsiona movimentos ao estilo #metoo, enfatização óbvia do repúdio, pelas mulheres, a este tipo de práticas. E por fim também é verdade que existe maior tolerância social a homens corruptos, pois a ferida na expetativa pública quando atos corruptivos são cometidos por mulheres, é provavelmente maior.

Mas não será esta uma correlação perigosa? Fazer corresponder a maior propensão para o cometimento de atos corruptivos à natureza do género (ou do sexo) do perpetrador?

Talvez o tempo de estudo fosse melhor despendido se ao invés de focar na desmistificação de uma categoria sexual, apartando-a da sua restante identidade, tivesse em atenção como as pessoas, que são um produto do seu género, raça, sexualidade, experiência político-social e por aí segue, se comportam em determinados contextos, evitando estereótipos e terraplanagens de individualidade.

Sejamos claros: o que efetivamente se quer esconder por debaixo deste tapete é a imparidade de acesso de mulheres às esferas de poder e decisão, quer na vida pública, quer nas empresas privadas.

E esta é que é a verdadeira vantagem do lançamento do debate.

Há que perceber que considerar estes indicadores de género no design de medidas anticorrupção é uma aposta sempre ganha, desde logo porque promotora, de per si, da igualdade entre sexos no acesso às esferas de poder. A corrupção convive muito bem com teias de amiguismo e pactos ao estilo omertà, ainda alheios ao estilo feminino. Aproveitemos, assim, esta certa inexperiência feminina dos palcos de poder, para obter proventos nesta batalha exigente.

A inclusão de mais mulheres nos centros de poder e fóruns de participação pública deve ser baseada na existência e efetividade dos seus direitos legais, nomeadamente de cidadania e não porque se indicia qualquer especial e diferenciadora característica de género.

Não me identifico como uma correligionária de Ana de Castro Osório, que teve mérito excecional, mas no seu tempo. Não me revejo na técnica de “quotas”, que considero disruptiva porque inventada por homens em busca de aprovação e menos como uma expressão de vontade consistente de envolver as mulheres nas decisões de poder. O acesso a lugares de liderança, através deste sistema, sequestra de certo modo a mulher, quando e se confrontada com interesses ilegítimos. O nosso estado civilizacional não nos permite ainda, contudo, fazer diferente.

Os sistemas representativos vivem de pessoas, com interesses no alcance de objetivos, com opiniões que as guiam de modo coerente com uma visão, valores e prioridades e com perspetivas, relacionadas com o tipo de experiências sociais, individualmente consideradas. Que homens e mulheres ocupam diferentes esteios nas esferas de deliberação política e pública é ponto assente.

E será da mitigação dessa desigualdade que, também na luta contra a corrupção, se alcançarão com certeza, melhores resultados.