Antonio Carlos Hencsey, Revista Inspire-c (Edição 10 - Jun. de 2019),

Resumo: Como a criminologia empresarial e a psicologia social embasam a tomada de decisão ética de um indivíduo? Junto à filosofia, estas duas ciências possuem metodologia e experiência para explicar muito do que fazemos, escolhemos e somos quando o tema é fazer o certo e o errado. Palavras Chave: flexibilidade moral, ética, criminologia empresarial, psicologia social ...

 

O que a ética, a psicologia social e a criminologia empresarial têm em comum? A resposta é: Tudo. Essas três belas ciências conversam entre si tão bem quanto os instrumentos uníssonos regidos por um bom maestro, ou toques de luz e sombra dando vida a uma linda obra de arte.

A busca do certo pelo certo, encontrar o equilíbrio entre o indivíduo e o coletivo e as diversas motivações para o porque nos comportamos da forma como o fazemos é parte do que procuram filósofos, psicólogos e criminologistas, e neste texto, venho apresentar a visão das duas destas áreas de conhecimento.

Como psicólogo e criminologista empresarial tenho o privilégio de ver a beleza da compreensão, vivência e aplicação do certo e do errado como um caleidoscópio, em toda a sua complexidade de formas, cores e transmutação.  O que é ser ético, e o que leva um ser humano a transgredir regras, acordos e até mesmo a lei em razão de contextos, momentos, questões pessoais ou profissionais.

Bom, uma primeira imagem deste caleidoscópio é que nem sempre aquele que age de forma eticamente impecável diante de um estímulo específico terá o mesmo comportamento ilibado diante de outro diferente. Parece óbvio, mas não é. Isso contradiz muitas das crenças do senso comum e do julgamento coletivo sobre a ética. Pensem em quantas vezes ouviram que quem para na faixa de pedestres é o mesmo indivíduo que obviamente pagará uma propina, e se ainda não o fez, certamente fará no futuro. E a fala vai além, normalmente é seguida de: são pessoas assim que deixam o país pior e não permitirão nossa transformação em uma nação sólida e integra. Uma pausa, antes que o leitor me critique quero deixar claro que sou completamente contra o motorista que para sobre a faixa de pedestres. Agora, vamos voltar a análise original.

Até poderemos encontrar indivíduos tolerantes, ou como chamamos na criminologia moralmente flexíveis para ambos os desvios, mas isso não é obrigatório. Na prática, tanto na sociedade como nas empresas, podemos ver pessoas que são flexíveis para um dos atos, mas não para o outro. Vemos diversos casos onde o indivíduo pode até mesmo ser ferrenhamente contrários a pagar propina mesmo sendo sistemáticos “estacionadores” em faixas de pedestres. Um dos fatores de grande importância que interfere neste processo é a autopercepção de honestidade que o indivíduo possui ao concluir cada ação. Ao realizar comportamentos, grande parte dos indivíduos almeja se sentir minimamente bem consigo, mantendo uma percepção de honestidade em suas decisões e aceitando seus atos tendo ao menos uma boa justificativa para ter realizado o que fez, em caso de dissonância. Se pagar propina, por exemplo não puder ser compreendido como algo compreensível, aceitável ou tolerável gerando repulsa e uma auto percepção negativa a de racionalizar esse desvio diminui a probabilidade de autoengano impedindo a eliminação da culpa pela transposição dos próprios valores ou valores da microcultura do indivíduo e consequentemente este comportamento dificilmente será realizado.  

Por outro lado o indivíduo pode se sentir perfeitamente sintônico parando o seu carro em uma faixa de pedestres, prejudicando dezenas de pessoas, impedindo o fluxo de idosos e cadeirantes colocando valores individuais acima do bem comum e aceitando esse comportamento como algo tolerável. Nestes casos o controle do comportamento e o seu balizamento moral não é interno, autônomo, mas sim precisa de um elemento externo que potencialmente o conduzirá através da punição, evitação de prejuízo ou educação a uma nova probabilidade de conduta mais aderente aos acordos coletivos.

A segunda imagem formada do nosso caleidoscópio é que a flexibilidade moral tem um misto de fluidez com estabilidade. Conforme vimos, pessoas não são totalmente boas tampouco totalmente más, e nem poderiam ser apesar de muitos quererem acreditar nisso. Essa realidade dificulta muito o trabalho de quem vive trabalhando com o tema ética, sejam filósofos, psicólogos sociais ou criminologistas, uma vez que é bastante comum termos de desmistificar a existência de rótulos como “ícone da honestidade” ou “o eterno pilantra”. Essa visão dicotômica da integridade humana torna extremamente complicada a relação das pessoas com erros, transformações e evoluções, pois se um indivíduo é visto como um pagador de propina contumaz certamente ele será, para sempre, a causa da desgraça da empresa ou, porque não, do País sem nunca ter a chance de rever os seus valores. Em um papel oposto, porém igualmente ou mais difícil está o “sr. Honesto”, aquele que é colocado em um pedestal seja na empresa ou na sociedade como pilar dos valores e representante do que é certo. Na prática vemos que essa pessoa perde o direito de errar, assim como perde o direito de ser flexível para uma série de ações, e quando o faz torna-se alvo de violentos ataques daqueles que, flexíveis como ele o tinham como salvador.

Bom, tudo isso para dizer que a flexibilidade moral tem um misto de fluidez com estabilidade, e em que sentido: na criminologia podemos separar o spectrum de flexibilidade moral e 5 grupos, cada um com características distintas e o ser humano está em cada uma destas categorias de acordo com o estímulo ao qual é exposto. Posso estar em um quando dirijo e tenho a possibilidade de falar ao celular simultaneamente assim como posso estar em outro quando sou convidado a fraudar um processo de compras na empresa na qual trabalho. Somos diferentes de acordo com a percepção moral que temos das situações e como veremos, dependendo do contexto que se apresenta.

Assim, iniciamos pela baixa flexibilidade moral que consiste em uma moral autônoma, é o indivíduo como auto regulador do seu comportamento. Seria o estágio mais evoluído da construção moral uma vez que a pessoa internaliza os valores do certo e age simplesmente por ser o certo. A busca pelo respeito coletivo, exemplo, preservação dos próprios princípios rígidos é o que direcionam a tomada de decisão. Não há necessidade de controles externos. Regras servem somente como formalização do acordo. O processo de educação e aculturamento ético foi completo e internalizado  trazendo reflexão do porque o respeito e convivência são fundamentais, assim, diante de situações onde há aplicação direta desta percepção moral, o sujeito se nega veementemente a realizar ações ou fazer parte de ambientes onde essa prática é operada por sentir que essa realidade fere a sua dignidade o seu existir.

A média baixa flexibilidade é também rígida em sua negativa em relação a ação, porém sua motivação para o comportamento é distinta. A moral, antes autônoma já passa a ser refletida em uma projeção feita no olhar do outro. Calma, eu explico. O indivíduo, quando exposto a situações onde conflitos morais ocorram, um processo é acionado seja por recordação totalmente mental ou por gatilhos físicos, visuais, auditivos ou outros onde fatores de grande afetividade e representatividade emocional são colocados como freios morais, tecnicamente chamados de fatores inibidores, a fim de reforçar os valores individuais aprendidos e até então estimados. Os reforçadores morais têm enorme importância no processo de motivação para ação correta, não porque o indivíduo por si não possua a moral preservada, mas porque existem situações onde o ser por alguém ou para alguém ou até mesmo por alguma causa é um elemento potencializador que dá sentido à ética. Um elemento importante neste caso é na média baixa flexibilidade o indivíduo não age por medo de ser punido pelo seu reforçador moral. Em muitos casos o seu reforçador moral nem mesmo sabe de sua influência. Pode até mesmo ser aquele antepassado já falecido que serve de exemplo por suas conquistas ou um parente bebê que levará anos para entender o que se passa.

É na média flexibilidade que as coisas começam a se complicar. Quando todo ser humano passa a ser vulnerável e passível de coisas que ele, em sua arrogância racional, acredita ser imune.

A palavra chave aqui é pressão. Todo ser humano é vulnerável diante de algum tipo de pressão, seja ela tempo, meta, autoridade, grupo, aceitação... Pressões internas, pressões externas. Pressões mais constantes ou mais esporádicas. A grande questão é, como lidamos com as nossas pressões? Reagimos a elas com o domínio que achamos que temos? Aqueles que responderam sim a essa pergunta sugiro que leiam o livro “Obediência a Autoridade” de Stanley Milgram, um clássico da psicologia social.

Não somos racionais diante quando nos vemos em momentos de grande tensão emocional e é natural que nossas escolhas éticas ficam comprometidas assim como diversas outras frentes. Assim, pessoas boas podem optar por ações que não fariam em outros momentos simplesmente para se verem livres da pesada mochila cheia de pedras que carregam. Neste ponto recebo normalmente duas perguntas: Quer dizer então que se fazem errado motivadas por uma pressão elas não tem culpa? E também, todo mundo que é pressionado então faz escolhas antiéticas?

Vamos lá, fazer errado é sempre errado e ponto. E nem sempre que uma pessoa é pressionada ela fará errado.  Qual o mecanismo de acionamento da pressão e qual a relação dela com a ética?

Uma pessoa quando sofre uma pressão diante da qual se sente indefesa por diversos motivos que podemos conversar em outro artigo, pode entrar em um estado de ansiedade que a levará a uma busca de solução do problema. Se não identificar, não se recordar ou não acreditar que não pode por algum motivo buscar ajuda para uma solução ética desta questão ela passa a se ver em um dilema: Enfrento sozinha esse problema, mantendo rigidamente os meus valores morais que não compactuam com o que é errado ou cedo à pressão e faço o que preciso para me ver livre desse peso?

Percebam que não é uma decisão fácil. Não se trata de comprar uma bicicleta ou ir ao cinema. Aqui falamos de um conflito onde há o sofrimento entre abrir mão de um valor e a submissão. Criminologicamente vemos que quanto mais distante a possibilidade de uma solução ética para o problema e quanto mais grave a percepção da ilicitude do ato que o individuo terá se submeter, maior a dor. Por outro lado, existindo uma possibilidade de agir de acordo com os seus valores, em sintonia com os princípios morais que regem sua tomada de decisão primária essa pode ser a escolha realizada, desde que haja segurança para que seja enfrentada a pressão. Essa escolha é o que chamamos de independência sem segurança.

Nestes casos, pensando na ética aplicada aos negócios, costumo dizer que a cultura ética entre outras formas, deve ser trabalhada seguindo um modelo de treinamento para pilotos de avião. É bastante provável que nem todos os pilotos estiveram em situações de crise com seus aviões a beira de um colapso na vida real, mas todos certamente passaram por essa situação talvez centenas de vezes em simuladores. Repetiram diversas e diversas cenas até tornar as situações de pressão tão automáticas que podem encontrar suas saídas me maneira praticamente não racional. O stress neste caso não causa um estreitamento do campo espacial e temporal como causa em pessoas comuns, simplesmente porque os pilotos foram preparados para reagir sem pensar. Quando preparamos pessoas a reagirem diante de dilemas éticos e eliminamos a possibilidade de pressões como chefes ameaçando empregos, clientes chantageando com diante de metas inalcançáveis ou até mesmo parceiros de trabalho cometendo assédio o certo aparece aos olhos como a saída possível, obviamente desde que a empresa seja realmente correta e as coisas funcionem. Não adianta nada um excelente piloto em um avião sem querosene e sem peças.

A média alta flexibilidade já lida com questões morais de uma forma diferente dos níveis anteriores. Enquanto até aqui o valor era a prioridade e respeitá-lo era o centro, agora a moral universal e o bem comum passam a dar lugar a uma visão mais racional. Pressões e princípios dão lugar a incentivos. Vale a pena agir bem? Vale a pena descumprir o que combinamos? O que é melhor? E por mais que outros possam ser levados em consideração, o elemento central desta reflexão é o individuo tomador de decisão. A tomada de decisão ética, se é que podemos chamar assim é individualista, mesmo que atinja outras pessoas de forma positiva. Da mesma maneira é o não agir de antiteticamente visando só a evitação da punição ou perda de um elemento desejado. Se pensarmos bem, há uma grande diferença entre pessoas que fazem trabalhos voluntários porque se preocupam genuinamente com os outros e aqueles que querem likes e reconhecimentos de terceiros ao divulgarem suas ações. Na prática todos fazem o bem, você pode dizer, para os assistidos não faz diferença, mas a essência é distinta. Se houvesse uma lei, por mais absurdo que seja esse exemplo, que proibisse trabalhos sociais de serem postados nas redes sociais, será que ambos continuariam suas atividades igualmente? Será que a motivação seria a mesma? O mesmo empenho? Talvez sim... Talvez não... Na prática digo a vocês, já vi mais não do que sim. Em muitas empresas vi mais gente descumprindo regras, cometendo fraudes, desviando comportamentos quando o contexto mudava e seus incentivos externos eram retirados do que o contrário. 

Da mesma forma vemos pessoas que buscam ganhos e diante do certo e do errado avaliam a conjuntura fazendo quase que uma leitura econômica da ética. No final, o maior peso da balança é o que vale.

E por fim temos a alta flexibilidade, a quem na criminologia chamamos de predadores e a psicologia definimos como traços sociopáticos. Aqui uma consideração importante. Não falo da patologia e sim de traços que aparecem na tomada de decisão.

Neste estado a pessoa desconsidera a moral em sua tomada de decisão, a satisfação de suas necessidades é a prioridade e a arrogância juntamente com o que chamamos de mente criminosa ou conhecimento do caminho para a ilicitude são predominantes. Isso significa, não são novatos. Já estiveram aqui varias vezes. Sabem o que fazer e como fazer. Estão preparados para se defender, argumentar e contra argumentar caso forem pegos e estão bem com isso. Não há conflito. Suas atitudes contrarias à ética são sintônicas como um negativo à autonomia da baixa flexibilidade.

É o fulano que bebe e dirige, e diz que sabe o que faz defendendo firmemente a sua posição. Bate de frente com todos afirmando que mesmo alcoolizado é um excelente motorista. Faz isso com extrema frequência e não considera em nenhum momento estar errado. Errado estão os outros que lhe incomodam com essa palermice. Vídeos de acidentes não o comovem. Burro é aquele que não sabe beber e dirigir diz ele. Se não sabe não faça!

Esperto que é, tem aplicativos que burlam os controles isso quando não é ele o desenvolvedor de um.  

O nosso problema começa quando esse mesmo indivíduo de alta flexibilidade é eleito ser humano do ano por salvar milhares de pessoas de um genocídio na África, às quartas feiras faz sopa para moradores de rua embaixo do minhocão, dois meses atrás teve que decidir entre pagar ou não uma propina para conseguir importar 50.000 caixas de medicamentos para salvar crianças doentes e vez ou outra trai a sua esposa com uma mulher por quem é apaixonado desde a infância. Quem ele é?

Existes muitas outras imagens que a psicologia e a criminologia podem formar nesse caleidoscópio quando o assunto é ética. A importância que o contexto, influências, erros, cultura, dilemas, racionalidade, irracionalidade têm para a nossa tomada de decisão .... Esse é um universo amplo, maravilhoso e que permite reflexões e práticas bastante interessantes.

Isso nos mostra como é rico esse tema e demonstra o espaço no nosso país para que tenhamos ações que transformem a sociedade para o que queremos ser.