Pedro Moura, Visão online
"(...) as pessoas devem ter mais tempo disponível e a liberdade para fazerem com ele o que bem entenderem. Seja para não fazerem absolutamente nada, seja paradoxalmente para trabalhar mais."
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A vida é tempo. A vida de um adulto, usando uma aproximação grosseira, é gasta com um terço do tempo a dormir, um terço a trabalhar, sobrando um terço para uma miríade de outras atividades como deslocações, tarefas de casa, lazer, alimentação, passar tempo com a família, frequentar redes sociais ou sexo (espero que se continue a preferir o último ao penúltimo). Contas por alto.
Ouso afirmar que otimizar esta equação é talvez o principal segredo para a maximização da qualidade de vida, um conceito em simultâneo altamente subjetivo e extremamente relevante para os indivíduos como para as sociedades.
Sou da opinião que a parcela desta fórmula com maior potencial de otimização (e impacto) será o 'trabalho', nomeadamente a redução do tempo gasto nesta atividade em benefício de outras. Não me alongarei demasiado no porquê desta opinião, pois havendo inúmeros argumentos opostos e cruzados relativamente a este tema, opto por usar um que para mim se sobrepõe a todos os outros: o trabalho deve dignificar e ajudar as pessoas, não torná-las escravas do próprio trabalho ou dos seus resultados. Ou, por outras palavras, o trabalho deve ser um meio para uma vida melhor, e não um fim.
Durante o século XX o número de horas de trabalho reduziu-se drasticamente. Em muitos países chegando a variações de menos 20 a 30 horas por semana [*1]. Tal foi possível sobretudo devido à introdução de inovações (tecnológicas, de organização e outras) na vida das sociedades. Ou seja, foi-se conseguindo fazer o mesmo ou mais, com menor necessidade de tempo humano, sendo que em cada instante em que estas reduções foram mais acentuadas houve sempre instabilidade social, naturalmente devida à falta de aptidões e conhecimentos de grandes faixas da população para se conseguirem adaptar às novas realidades, que se viram mais ou menos rapidamente desapossadas dos seus estilos de vida e meios de subsistência (ver por exemplo o caso dos Luditas [*2]). No entanto, no longo prazo estas mudanças permitiram a evolução dos níveis de vida de bilhões de pessoas para níveis impensáveis nas épocas anteriores. Nem tudo será bom, mas quem ainda pense que o mundo está cada vez pior (a larga maioria da população) devia informar-se melhor (por exemplo testando a sua ‘ignorância’ em http://forms.gapminder.org/s3/test-2018).
No entanto é com desagrado que constato não sentir uma discussão séria e democrática sobre este tema, sobretudo do lado dos líderes e poderes instalados (políticos, sobretudo). Continua-se a apostar na promoção de uma economia assente sobretudo em trabalhos sub-qualificados, mal-pagos e que não acrescentam real valor económico ou social, desde que sejam a 'tempo inteiro' e que a taxa de desemprego oficial se mantenha baixa [*3]. O incentivo generalizado é para a estagnação e para a manutenção do status quo, a nível geral e individual, o que continua a manter a maior parte da população ativa com fracas capacidades de adaptação aos tempos que sempre mudam. Sente-se no ar uma opinião generalizada que ‘antes é que era bom’. Uma cena podre, como diriam as minhas filhas.
Do lado do sector empresarial privado a preocupação parece ser mais em cada um conseguir uma maior fatia do bolo já disponível, que em aumentar o tamanho do bolo. E o turismo por si só não vai alterar os paradigmas fundamentais sobre os quais baseamos a nossa economia, e consequentemente a nossa produtividade e valor acrescentado.
Isto mesmo quando os números entre países são claros na relação entre rendimentos e horas de trabalho anual. Veja-se o gráfico abaixo: há uma clara distinção entre os países que ao longo dos anos investiram (investem) de forma mais séria numa evolução do mercado de trabalho assente na inovação orientada à criação de valor acrescentado e à produtividade (produzindo mais com menos horas de trabalho anual) e os países que ainda estão a fazer esse caminho, muitos deles ainda com estruturas produtivas assentes em salários baixos, muito tempo de trabalho e fraca produtividade económica.
Relação entre PIB per Capita (Eur) e Média de Horas de Trabalho Anual em 2017 (fonte: OCDE) [*4]
É paradigmático ver a discrepância entre o rácio encontrado dividindo o PIB per capita pelo número de horas trabalhadas de países como a Alemanha (28€ / hora de trabalho), Irlanda (34€ / hora de trabalho) e Portugal (10€ / hora de trabalho). Não se melhora este indicador aumentando o número de horas trabalhadas ou diminuindo o custo de trabalho por hora, mas sim a aumentar o valor do que se produz (e vende) e a diminuir o número de horas de trabalho. Ou seja, conseguindo fazer mais (ou de maior valor) com menos tempo (e esforço) humano. Ou seja, ousando mudar, inovar, arriscar.
Chamo a atenção que tenho bem presente que correlação não é causalidade. Ou seja, não acredito que diminuindo o número de horas trabalhadas o nosso PIB per capita vai miraculosamente aumentar. Não acho que a diminuição do tempo alocado à função trabalho deva ser considerado um meio para atingir um qualquer fim. Há quem ache que só se conseguirão garantir níveis de (des)emprego satisfatórios se cada pessoa trabalhar menos. Há quem ache que toda a gente devia trabalhar 60 horas por semana para conseguirmos ter uma economia competitiva. Há quem ache que a sociedade precisa que as pessoas tenham mais tempo para a família e para as suas comunidades. Há quem ache que se se as pessoas tiverem mais tempo as pessoas vão ceder à preguiça e ao vício e a sociedade irá quebrar. Há quem ache que as necessidades de formação para garantir melhores capacidades de adaptabilidade para o futuro só podem ser preenchidas com mais tempo disponível por parte das pessoas. Há quem ache que as crianças deviam passar 12 horas na escola sobretudo em atividades letivas para estarem preparadas para o futuro.
Não estou certo de nada disto. É um problema demasiado complexo para opiniões binárias. Como já referi acima, a minha perspetiva aqui é sobretudo de longo prazo e de muito alto nível (ainda se pode sonhar com um mundo melhor?).
Acredito firmemente que as pessoas devem ter mais tempo disponível e a liberdade para fazerem com ele o que bem entenderem. Seja para não fazerem absolutamente nada, seja paradoxalmente para trabalhar mais. Mas devem ter mais tempo.
Tenho para mim que a diminuição de tempo alocado ao trabalho e correspondente aumento de tempo disponível deve ser um fim em si mesmo, filosoficamente escrevendo, como outras grandes conquistas humanas. Afinal de contas, a vida, na realidade, é somente tempo. Convém usá-lo o melhor possível, para o melhor possível.
Epílogo didático
Num mundo em que estamos sempre a viver no torvelinho de indignações e patetices de curto prazo que a espuma dias nos traz, fazem falta grandes objetivos civilizacionais que levem a sair deste egotismo anestésico e a almejar um mundo melhor, se não para nós, pelo menos para quem nos segue.
Mas que preço se está disposto a pagar? Qual acha que seria o resultado do seguinte referendo hipotético:
“Está em discussão uma proposta de lei com profundas alterações na regulamentação do trabalho, nomeadamente ao nível do número de horas de trabalho semanal e salário para todos os trabalhadores dependentes.
Qual das opções prefere:
- Trabalhar 48 horas por semana (mais 20% que o atual) e aumentar o seu salário em 20%;
- Trabalhar 32 horas por semana (menos 20% que o atual) e diminuir o seu salário em 20%;
- Não alterar nem o atual período de 40 horas de trabalho por semana nem o ordenado atual.
Caso a taxa de abstenção neste referendo seja menor que 50% a opção mais votada será posta imediatamente em prática.
A sua não participação neste referendo garantirá que a sua opinião não será tida em conta.”
Para aumentar o caráter didático deste artigo, vamos desafiar a Sabedoria das Multidões [*5]. Cliquem aqui para acederem a este referendo online [*6], que peço para preencherem e partilharem com a vossa rede. Comprometo-me a divulgar os resultados por email e na minha página de Facebook a 31 de Julho de 2018.
Referências
*1 - https://ourworldindata.org/working-hours
*2 - https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludismo
*3 - http://visao.sapo.pt/actualidade/economia/2017-12-16-Ha-cada-vez-mais-emprego.-a-prazo-e-mal-pago
*4 - Os dados do gráfico apresentado podem ser encontrados em formato Microsoft Excel (aqui), Web (aqui, descomprimir e abrir com o ficheiro índex.html), e Gapminder / Vizabi (documento aqui, descarregar o software aqui). As fontes destes dados são as seguintes:
- OECD (2018), Average wages (indicator). doi: 10.1787/cc3e1387-en (Accessed on 09 July 2018), https://data.oecd.org/earnwage/average-wages.htm#indicator-chart,
- OECD (2018), Hours worked (indicator). doi: 10.1787/47be1c78-en (Accessed on 09 July 2018), https://data.oecd.org/emp/hours-worked.htm
- https://stats.oecd.org/viewhtml.aspx?datasetcode=AVE_HRS&lang=en
- World Development Indicators (indicator code NY.GDP.PCAP.CD)
*5 - https://en.wikipedia.org/wiki/The_Wisdom_of_Crowds
*6 - https://goo.gl/forms/oobUe0RaBWJILhS93