João Pedro Martins, Visão on line,

Em Portugal é difícil encontrar uma pessoa que não odeie a troika. Mas o Zé é uma das poucas exceções.
Quando lhe perguntei a opinião sobre a troika, disse-me que era simpática e segredou-me com um sorriso transmontano que o coração ainda lhe salta sempre que ouve este nome. Confidenciou-me que uma das coisas que lhe dava mais prazer era dar dinheiro à troika. Dizem que o amor é cego, mas para o Zé a troika é tudo.
 O Zé vive numa pequena aldeia no interior do país. São poucos os portugueses que se podem dar ao luxo de ter a qualidade de vida que o Zé já desfrutou. Uma escola, um centro de saúde, um café e uma estação de comboios, tudo a menos de cem metros de casa.
Mas a centralidade da aldeia transformou-se numa distância infinita que separa o Zé do resto do mundo. Um dia alguém se lembrou de que as ligações ferroviárias davam prejuízo ao Estado. Fizeram contas e acabaram com o comboio. Ficaram os carris onde as crianças da escola podiam brincar sem serem atropeladas.
Pouco tempo depois voltaram a fazer contas e como a escola tinha poucos alunos deslocalizaram as crianças para uma aldeia a 20 quilómetros de distância. Em menos de uma década, as famílias com filhos migraram para os grandes centros urbanos.
Quando começaram os cortes cegos na saúde, ainda antes da troika aparecer, chegaram à conclusão de que não havia doentes em número suficiente para justificar a manutenção de um centro de saúde com uma enfermeira e um médico.
Depois fechou o café que começou a ficar sem clientes e ficou apenas o Zé na aldeia. À noite ainda se entretinha a ver os quatro canais de televisão generalistas, até que um dia alguém se lembrou de acabar com os retransmissores analógicos e esqueceram-se do Zé que vive numa aldeia onde não chega o sinal da televisão digital terrestre.
O Zé já não consegue vender os ovos das suas galinhas à cooperativa da aldeia vizinha porque agora é obrigado a passar faturas e para abrir atividade como empresário tem de se deslocar umas dezenas de quilómetros para ir às Finanças e à Segurança Social. Mas o problema é o comboio, que já não passa na aldeia, e os táxis que só apareciam esporadicamente nos filmes que o Zé via na televisão antes do apagão analógico.
Para pessoas como eu, o Zé foi vítima de uma fraude. Uma enorme burla estatal que lhe roubou o acesso aos serviços públicos consagrados na Constituição da República e o afastou da família, dos amigos, do país e da vida. O Zé não escolheu ficar sozinho, isolaram-no. Trataram-no como um criminoso que foi condenado a passar os últimos anos de vida na solitária.
Para os nossos governantes, o Zé não passa de um simples algarismo perdido no meio dos números das estatísticas. É uma alma esquecida para a qual qualquer investimento público é um desperdício que só faz aumentar o défice.
O Zé amou a Troika e recordou-me que as poucas moedas que tinha na algibeira seriam dadas com alegria à Troika. Finalmente, o Zé contou-me que desde o tempo em que o comboio deixou de passar na aldeia, nunca mais foi ao Porto ver a rapariga loura ucraniana que aos sábados à noite lhe fazia companhia numa das casas de alterne da Ribeira.