António João Maia, Jornal i,

O problema recentemente suscitado em alguns países europeus com o aparecimento de carne de cavalo nalguns alimentos pré-confeccionados existentes à venda no mercado, contrariando as indicações constantes do rótulo das embalagens, suscita uma questão de carácter sociológico de grande importância, porventura até determinante no contexto dos factores estruturantes de uma Sociedade. Referimo-nos à questão da Confiança.
De entre muitos outros factores, a manutenção da coesão social depende muito dos índices de Confiança que cada sujeito deposita nos demais, quer naqueles que directa e pessoalmente conhece e com os quais constitui as suas relações pessoais (a família, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho e todos aqueles com quem de alguma forma se vai relacionando no seu dia-a-dia), quer naqueles que, apesar de não conhecer pessoalmente, acaba por confiar de uma forma abstracta, através dos diversos processos de produção e dos mecanismos de controlo, que, no seu todo, constituem os sistemas que operam nas sociedades (os produtores e distribuidores de alimentos, de vestuário, de energia, de segurança, de transportes, etc., etc.). Ora como no contexto de cada sociedade cada pessoa se relaciona apenas com um número ínfimo de sujeitos, podemos aceitar que acaba por ser o nível de Confiança abstracta que determina a manutenção da coesão do todo social.
No livro As Consequências da Modernidade, o sociólogo Inglês Anthony Giddens refere-se precisamente à importância determinante desta Confiança abstracta enquanto factor para a manutenção e aprofundamento das sociedades modernas dos nossos dias.
Esta Confiança abstracta assenta em processos normalizados de produção e em mecanismos de controlo relativamente aos produtos de que necessitamos no dia-a-dia, e pressupõe que, com um grau de probabilidade muito elevado, a esmagadora maioria dos sujeitos confie que as informações disponibilizadas correspondem efectivamente aos produtos a que respeitem.
Porém, como se viu, não estão afastados os riscos de ocorrência de situações de desconformidade.
O problema da globalização da economia e dos mercados tem suscitado – pelo menos em abstracto - cada vez maiores probabilidades de ocorrências de natureza similar. Elas podem resultar muito simplesmente de diferenças entre os índices de qualidade de exigência e de controlo sobre o cumprimento dos processos e mecanismos de produção nos diversos países.
Se os cidadãos passam a sentir-se defraudados nas suas expectativas por sucessivas ocorrências de natureza semelhante à que suscitou esta reflexão, assistiremos muito provavelmente a uma redução dos índices de Confiança abstracta e, correlativamente, da coesão social. A Confiança pode gradualmente dar lugar à Desconfiança nas relações entre os sujeitos, e esta alteração configura-se em si mesma como um problema social de dimensão considerável…
Num momento em que, por razões diversas, se discute em Portugal a questão da redefinição da dimensão, da estrutura e das funções que devem ser asseguradas pelo Estado, importa não perder de vista a manutenção e salvaguarda da boa qualidade dos mecanismos de segurança e controlo que têm garantido os elevados índices de Confiança abstracta sobre os diversos produtos que nos têm sido disponibilizados para consumo.