Carlos Pimenta, Visão on line,

1. No Speakers' Corner o orador falava sobre o crime: "Foi encontrado morto numa margem do Tamisa o grande filósofo Immanuel Kant, agarrado à primeira edição do seu livro Crítica da Razão Prática. Apesar da deterioração do papel foi possível detectar nos laboratórios da polícia londrina o seguinte comentário na primeira página: "É uma exigência da razão reconhecer a existência de outros homens, tratando-os como fins e não como meios". Mais um filósofo assassinado. A polícia admite que não haja um só criminoso, mas muitos, o que dificulta bastante a investigação".
2. Acontecimento dramático.
A Europa que foi palco do Renascimento Italiano, do nascimento da ciência moderna, da Revolução Industrial, da Revolução Francesa, herdeira das culturas greco-romana e judaico-cristã, casa de artistas, escritores, músicos, pintores e filósofos imortais parece ter esquecido, em poucas décadas, tantos séculos de promoção do belo, do bem e do engenho.
A Europa que sempre (tirando alguns dramáticos curtos interregnos) defendeu os valores do humanismo, o respeito pelo homem e a sua dignificação, que tem sido um baluarte da democracia e da pluralidade de ideias e culturas, parece agora se esquecer do Homem, da inclusão, da convivência, da ética e da tolerância.
3. De facto, hoje, os aspectos económicos sobrepõem-se a todas as outras vertentes da vida em sociedade. Quando se abordam essas problemáticas está-se mais preocupado com os aspectos financeiro que com a criação de produção e rendimento (durante a crise que ainda estamos a viver falou-se muito da banca, da bolsa, dos mercados financeiros e quase nada da agricultura, da indústria, do comércio), alienando o essencial aos interesses especulativos. A inflação é tema mais importante que o emprego e o desemprego, a pobreza e a exclusão social, a crise, o crescimento do produto. Apregoa-se a redução da política e do Estado ao mínimo indispensável, defende-se o "emagrecimento" deste, mas não se propõe a mesma dieta para os hiperlucros e os esbanjamentos de muitas grandes empresas. Contudo, contraditoriamente, aceita-se, mais, promove-se e aplaude-se, um certo tipo de intervenção: nesta crise, para pôr os contribuintes a pagarem os prejuízos do capital especulativo, que frequentemente não é contribuinte.
E os Estados aceitam esta situação e fazem haraquiri. Os cidadãos deixam-se embalar na cantiga da inevitabilidade e da defesa apologética de que a actual economia é a única possível, o que é fideisticamente justificado pela assumpção de que o mercado é Deus e a liberdade da livre circulação de capitais a sua Igreja (eliminando o paganismo e a bruxaria da liberdade de circulação de trabalhadores, a liberdade de todos terem uma vida digna, a liberdade de se acreditar num futuro melhor).
Enfim, usando um chavão, a nova Europa arrumou a velha Europa dos ideais e utopias, das preocupações sociais. A nova Europa é a campeã do neoliberalismo.
4. Porquê?
São muitas as causas desta situação, mas uma delas é certamente a Europa ser hoje um centro nevrálgico das actividades económicas ilegais:
O fim do sistema económico socialista foi antevisto vários anos antes pela elite governante ("a nomenklatura dispôs de dez anos para se reestruturar e para tirar proveito da inevitável transição para o capitalismo"), tendo muitos pertencentes à referida elite organizado a economia paralela, a posse de enormes riquezas, o controlo de centros de decisão nevrálgicos, a sonegação de recursos financeiros, a criação de exércitos paralelos de "capangas", a transferência para "lugares seguros" (ex. offshores) de muitos destes recursos.
Essas máfias reforçaram o seu poder às escalas europeia e mundial controlando empresas, negócios e pessoas, aparecendo frequentemente de uma forma populista (ex. no futebol), ramificando-se em instituições culturais e filantrópicas. Influenciam activamente a política nacional e internacional. Alguns conflitos têm-lhe sido particularmente benéficos (ex. Guerra dos Balcãs).
As medidas tomadas pelos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 tornaram aquele país menos apetecível (veja-se o "Patriot Act") para ser o centro principal das actividades ilegais à escala mundial e de lavagem de dinheiro. Muitas dessas actividades transferiram-se para a Europa: "a libra e o euro tornaram-se subitamente muito atractivos enquanto moedas de investimento. Isso explica por que é que se tornaram as moedas preferidas para os fundos de investimento especulativo".
A Europa é detentora de vários offshores onde, com grande impunidade, se pode colocar os sites informáticos de actividades ilegais, fazer lavagem de dinheiro e controlar as redes económicas criminosas (embora não se pondo de parte a existência de operações legais ou perfeitamente legítimas, esclareça-se). Segundo o Fundo Monetário Internacional temos, na Europa: Andorra, Campione (Itália), Chipre, Dublin (Irlanda), Gibraltar (RU), Guernsey (RU), Man (RU), Jersey (RU), Liechtenstein, Londres (RU), Luxemburgo, Madeira (Portugal), Malta, Mónaco, Holanda e Suiça. Fora dela: Tahiti (França), Anguilla (RU), Aruba (Holanda), Bermuda (RU), Ilhas Virgens (RU), Ilhas Caimão (RU), Montserrat (RU), Antilhas Holandesas (Holanda), Turks e Caicos (RU), Estados Associados das Índias Ocidentais (RU). Outros pertencem à Commonwealth.
O interesse da Europa em ser parceiro privilegiado da China torna-a particularmente condescendente com os atentados aos direitos humanos naquele país, à entrada (disfarçada) das máfias chinesas na Europa. A China é a campeã da contrafacção (dos bens de consumo corrente aos medicamentos, da tecnologia e programas informáticos às peças de avião), da pirataria marítima e na sua área de influência actuam importantes redes da criminalidade internacional. Com a "paciência de chinês" vão construindo a sua rede comercial e especulativa internacional.
Enfraquece-se o Estado-nação e reforça-se o Estado-mercado na Europa: "Enquanto o Estado-nação baseou a sua legitimidade numa promessa de melhorar o bem-estar material da nação, o Estado-mercado promete maximizar as oportunidades [realizáveis ou não, por todos ou alguns] à disposição de cada cidadão individual."
5. Criminalidade, fraude, actividades económicas ilegais, máfias existem há muito nos países europeus mas nos últimos trinta anos houve uma intensificação imensa, acompanhada de profundas alterações qualitativas que todos nós vivemos.
O controlo dos centros nevrálgicos de decisão económica e política processa-se por vias directas (ex. adquirindo participações nas empresas, injectando dinheiro nos mercados financeiros, colocando "homens de mão" em certos lugares), por vias indirectas (ex. revelando um comportamento político exemplar e apoiando pessoas, partidos e instituições; influenciando os órgãos de informação) e por vias subtis que parecem não revelar qualquer mácula (ex. promovendo a ideologia do "primado absoluto do mercado", da "liberdade total da circulação de capitais", do "pragmatismo da decisão política").
6. O orador seguinte no Speakers' Corner chamou a atenção para o aumento do abstencionismo nas eleições, para o facto de estas se tornarem mais concursos de beleza dos sorrisos, beijos e abraços dos políticos que lugar de debate de ideias e defesa de ideais e apelou, porque José Saramago está traduzido em inglês, ao voto nulo.
Publicação mais directamente utilizada nesta crónica: NAPOLEONI, L. (2009). O Lado Obscuro da Economia. Lisboa, Presença.