José António Moreira, Visão on line,

Uma sala bonita, impecavelmente decorada com peças originais nas paredes e sobre os móveis. Um conjunto de pessoas de meia-idade, de ambos os sexos, com profissões liberais ou ligadas ao ensino. Uma tarde amena, propícia a um encontro para "dois dedos de conversa" defronte de uma bebida e alguns aperitivos.
Já se haviam abordado tantos assuntos que não surpreendeu ninguém que uma das convivas tivesse "puxado" para a conversa as novidades cinematográficas que seriam lançadas no circuito comercial nas próximas semanas.
- Li ontem que para a semana vai estrear o filme "A Origem", com o Leonardo DiCaprio. A crítica não é muito favorável, mas recomenda o filme pelo desempenho do actor principal.
- Já o vi! É bom - disse o dono da casa com tom de voz moderadamente baixo, destinado a impressionar a audiência que se tinha virado para ele.
- Mas como é que já o viste se ele ainda não estreou?! Foi quando foste a Madrid, a semana passada? - perguntou, admirada, a conviva que havia introduzido o tema.
- Não! Vi-o aqui em casa … Empresto-te se quiseres. Saqueio-o da Internet.
E sem esperar pela resposta levantou-se e dirigiu para o móvel que albergava o televisor, de onde voltou com um conjunto de DVD que tinham em comum, para além do tradicional visual cinzento metálico, o facto de conterem inscrito a marcador, numa das faces, o nome do filme que continham. Uma rápida pesquisa nos discos permitiu-lhe encontrar o que procurava.
- Podes levá-lo para ver - disse, estendendo-lhe o disco. - Se quiseres faz uma cópia. Só te peço que mo devolvas pois já disse ao meu sobrinho que lho emprestava.
- É claro que to devolvo - disse ela sorridente, enquanto passava pelo bordo do disco, distraidamente, o dedo indicador ornado de unha bem envernizada.
Porque estas crónicas têm que ser curtas, sob pena de assustarem o potencial leitor, escuso-me a continuar a reproduzir a conversa. Direi apenas que ela continuou em torno das virtualidades da Internet, de onde se podiam sacar não só filmes, como músicas, programas informáticos e até livros. E a constatação a que chegaria um observador, que se mantivesse invisível, a um canto da sala, é que todos os convivas tinham algum tipo de "know how" - ou, como costuma dizer-se, "expertise" - sobre o tema. E os sítios mais apropriados para fazer tais "downloads" foram sendo trocados, cada um adjectivado como sendo melhor do que o do vizinho. Os convivas que pensavam que apenas se podiam sacar músicas, ficaram dotados do conhecimento para chegarem aos filmes; os que conseguiam chegar aos materiais mas não os conseguiam desproteger ficaram a saber como forjar senhas de acesso; os que tinham conhecimentos multivariados, e utilizavam correntemente a ferramenta, aproveitaram para criar uma espécie de ascendente sobre os restantes.
Imagine agora o leitor que o suposto observador invisível se materializava e lançava uma simples pergunta na roda de convivas: "Então, mas esses 'downloads' ilegais não são um crime?".
A mais veemente negação jorraria em uníssono daquelas bocas. Que não, porque são as empresas detentoras dos direitos que fomentam os "downloads" ilegais, como forma de publicitarem os seus produtos. (Implícita nesta visão está a ideia de que tais comportamentos constituem um favor que se faz a essas empresas.) Que não, porque as grandes empresas capitalistas ganham muito dinheiro. (O "sacanço" da Internet aparece, assim, como um instrumento da luta de classes, com notórios contornos de redistribuição do rendimento ao nível global.) Que não, porque a Internet é o paradigma da moderna democracia e, por isso, tudo o que por lá se encontra é pertença de todos. (É bom de ver que este tipo de justificação tem sempre uma excepção, que se aplica aos eventuais direitos de autor de que o sujeito seja detentor.)
Estas (pseudo) justificações, e umas quantas mais que se lhe poderiam facilmente ajuntar, não são nem mais nem menos do que o aspecto visível da racionalização que cada sujeito tem necessidade de efectuar para conseguir viver de consciência tranquila quando quebra as regras sociais ou legais instituídas. Não lhe passa pela ideia perpetrar um roubo, pois vai contra os valores que lhe foram incutidos. Como a posição social e nível de rendimento que possui também não permite a justificação do roubo, há que procurar soluções mais rebuscadas, mas igualmente destinadas a apaziguar a consciência.
Face aos resultados, não se pode dizer que a mente humana não opera milagres, ao conseguir transformar um roubo (com todas as letras) num acto que pode, no limite, ser percebido pelo sujeito como positivo para a sociedade.