Carlos Pimenta, Visão on line,
Cena 1
- Não sei para que lado me hei-de virar. Onde trabalho há quem se governe à valentona, e há muito tempo. O que entra no armazém ronda um terço do que é encomendado e pago. Já tinha desconfiado que havia tramóia e tenho andado, dentro das possibilidades, a reunir elementos. Agora que os factos são insofismáveis não sei o que fazer com eles.
- Ainda te arriscas a perder o emprego. É estar preso por ter e não ter cão. Se nada fizeres, segundo me tens contado, arriscas-te a ser despedido porque os indicadores de gestão são péssimos e há rumores de que vão reduzir o pessoal. Se fizeres alguma coisa tens grandes hipóteses de seres corrido porque atropelaste interesses poderosos.
- Talvez tenhas razão, mas ainda sem pensar nas consequências, as minhas dúvidas são como e a quem, fazer chegar as informações que tenho. Não há outra possibilidade desta fraude ser conhecida senão pondo a boca no trombone. A coisa é bem feita. E só isso é que justifica que dure há anos e mesmo eu, que estava numa posição relativamente privilegiada para a descobrir, durante muito tempo, não me apercebi de nada. E olha que se metia pelos olhinhos dentro!
- Quase sempre é assim com as fraudes. É por isso que as denúncias são a principal forma de detecção das fraudes. Ainda há dias lia o relatório da ACFE sobre as fraudes nos Estados Unidos da América no período 2008 a 2010 e lá se dizia que 40% delas foram detectadas porque alguém deu uma dica ou relatou uma situação. Os controlos, auditorias e outras medidas são bem menos eficazes. E a situação nos anos anteriores foi semelhante.
- Não sei como é por essas bandas, mas no nosso país denunciar cheira a bufo, tenho problemas de consciência com isso. Mais a mais, eu que dei os costados contra a situação, antes do 25 de Abril. E olha que não é só por cá! Durante o tempo que andei por essa Europa trabalhando hoje aqui, amanhã ali, senti a mesma repulsa pela denúncia por parte dos meus colegas de trabalho.
- Em 1974 eu era um fedelho. Nunca tive essas tuas experiência… Se idade dá sabedoria eu não serei a pessoa indicada para ajudar-te. Tu correste mundo, eu fiquei por aqui. Mas parece-me que a situação é totalmente diferente. Eles roubarem não é coisa boa. Se te assaltarem a casa não fazes queixa à polícia- Aqui é o mesmo, apesar de tu não seres a vítima directa.
- Lá isso é verdade. Mas também é verdade que o meu salário é uma miséria, e olha que nem estou muito mal pago, e o chefe tem uma vida à tripa forra. Quando no ano passado um colega meu teve a frontalidade de pedir ajuda, porque estava a passar dificuldades por doença, a resposta que teve foi ser posto no olho da rua. E depois não é só isso. Há pessoas que até não ganham nada com a fraude e que também vão sofrer as consequências se eu denunciar a situação. O tipo do armazém só não disse nada porque tem medo. Sempre foi assim. Até te digo mais, acabo por ter pena de um dos tipos que está metido no processo. Bem sei que é um pião, mas desde que o filho se meteu na droga ele tem tido uma vida desgraçada!
- Estás a misturar alhos com bugalhos. Estás a misturar as coisas. Volto ao que te perguntava há bocado. Vais na rua e és assaltado. Roubam-te o salário do mês que tinhas na carteira. Antes de fazer queixa vais investigar se o ladrão tinha problemas familiares, estava no desemprego ou foi despedido sem razão- Não. Houve roubo, participas. Se tu ou algum dos teus colegas forem despedidos pelos prejuízos que esses marmanjos estão a causar, as chefias ou os que ficam vão entrar em conta com todos esses aspectos-
- Não gosto de pensar em termos egoístas.
- Não sejas egoísta. Pensa em termos éticos. Na sociedade em que vivemos, o que eles fazem não é uma violação das relações entre as pessoas, entre cada um de nós e as instituições com que lidamos- A não ser que…, desculpa que diga assim, sendo tu um amigo, a não ser que todas essas dúvidas sejam uma forma de tu encobrires a ti próprio o medo que tens…
- Não me digas uma coisa dessas que até fico zangado contigo. Só não levo a mal porque te conheço bem… O medo que as pessoas têm de dizer o que pensam, de actuarem, é das coisas que mais me irritam. Até parece que não vivemos em democracia!
- Ou a democracia também é isso mesmo.
Cena 2
- Convenceste-me. Fiquei a pensar na nossa conversa e concluí que não tenho outra coisa a fazer do que avançar e informar a quem de direito da fraude. Não sei quando é que ela começou, disso não tenho dados, mas pelos elementos que compilei já ultrapassou um milhão de euros.
- Vais falar ao teu chefe-
- Já me decidi que não vou por aí. Não é por não ir à mesma praia dele. Até admito que ele seja honesto, no sentido de que não quererá que tais coisas aconteçam debaixo do seu nariz. Nem fica bem perante os chefões, nem revela gestão muito apropriada. Ele também não gosta de fazer essa figura. Mas decidi que seria um acto ineficaz. Em primeiro lugar porque ele é muito medricas e tenho sérias dúvidas que actuasse. Depois não faz nada sem consultar X e esse está metido na tramóia. Entre acreditar nele e em mim não tenho qualquer dúvida… Ele é o seu braço direito, com uma imagem de abnegado. Sem faltas, sem férias, sacrificando-se a entrar mais cedo e a sair mais tarde, centralizando quase todos os processo importantes. O chefe delega nele tudo…
- Grande pato! Homem nas boas graças, sempre presente, centralizador e sem dividir tarefas com ninguém é a figura típica do defraudar. Do que pode dormir descansado!
- Pois é. Resolvi denunciar directamente à polícia. Até porque a fraude embora não tenha finalidades fiscais acaba por ter algumas repercussões. Eles certamente são mais sensíveis e poderão conduzir o processo até às últimas consequências. Pelo menos assim espero.
- Vais dar a cara ou fazes uma denúncia anónima-
- Desde que resolvi avançar deixei de ter hesitações sobre o que me perguntas. Vou dar a cara!
- Já falaste com a tua mulher sobre o assunto- Pensa bem… Anda por aí muito gato escaldado!
- Tem de ser, por várias razões. Tens pachorra para me aturares- Conversando contigo fico mais aliviado, para além de que posso confrontar pontos de vista. Tu és um tipo jovem mas bem informado, e sobretudo bem formado.
- Obrigado pelo que me toca.
- É verdade. Compreendo que muitas vezes não há outra saída senão manter o anonimato. Quem denuncia falcatruas de chefias corre o risco de ir para o desemprego e a sobrevivência da família é tão sagrada como os nossos valores morais. E mesmo que venha a ser recompensado, o que duvido, é tão mais tarde que estarei com os pés para a cova. Não sei se juridicamente a protecção de testemunha está bem ou mal escrita na nossa lei, mas o que todos sabemos é que não funciona para casos destes. É preciso que caia o Carmo e a Trindade para eventualmente funcionar…
- Parece-me que os teus argumentos vão a favor do contrário do que vais fazer…
- Calma amigo, não me deixaste acabar. Percebo as razões da opção pelo anonimato de muitos mas também sei que uma denúncia anónima sobre uma situação de fraude tem uma probabilidade de êxito inferior à de encontrar agulha em palheiro. A fraude não é um acto enganoso em que o que parece não é- Quantas denuncias anónimas as autoridades recebem por ano- Centenas de milhares, mais do que isso- Quantas são sem fundamento- Quantas se referem a crimes bem mais violentos ou facilmente investigáveis-
- Os neurónios burocráticos do polícia ou do procurador devem logo activarem-se e já têm a conclusão escrita antes de acabarem de ler a denúncia... Percebo, resolves dar a cara para aumentar a eficácia.
- Talvez, mas a razão principal é outra. Os pormenores da denúncia levam facilmente a identificar quem a faz. Entre suprimir factos para garantir um efectivo anonimato ou fornecer todas as informações que recolhi não tenho dúvidas em optar pela segunda hipótese.
- O "medo de existir" parece não ser contigo!
- Também é, mas o cumprimento daquilo em que acreditamos é mais forte.
Cena 3
- Como vai o teu caso de denúncia da fraude- Quantos anos já se passaram- Está quase a fazer cinco-
- Cinco infernais anos, podes crer. Como sabes fui logo marginalizado no serviço. Puseram-me defronte de uma secretária quase vazia, passando horas e horas sem ter uma única responsabilidade. Não tiveram a coragem de me despedir, valha-nos isso. Alegra-me que tive a solidariedade de muitos colegas. Mais do que esperava. Há mais pessoal contra a fraude, embora com uma certa tendência para a desculpabilização, do que por vezes imaginamos.
- Mas conseguiste que os culpados fossem a julgamento! E até houve condenações! Pelo que vamos lendo nos jornais até foi um bom resultado…
- Só pensar nisso me põe nervoso. Em primeiro lugar decorreram três anos para serem levados a tribunal. Se eu estivesse à espera do resultado para ser ressarcido da marginalização de que fui alvo, estava bem servido. E durante esse tempo, quantos dias tive que me deslocar para aqui e para ali, ser ouvido aqui e ali- Perdi a conta.
- Como não tinhas nada para fazer, até servia de entretimento!
- A brincar o dizes, mas se eu entretanto tivesse ido trabalhar para outro sítio, quem me pagava todas essas ausências ao trabalho, e as deslocações, e o ter que comer fora- Quando fazia essas viagens turísticas, como tu lhe chamas, e era ouvido mal o menos, mas a maior parte das vezes perdia horas e horas para saber que o julgamento era novamente adiado, esperando em verdadeiras espeluncas, nas escadas, em salas sem condições, e ainda por cima tratado como se eu é que fosse o criminoso, sempre com ameaças de multas se faltasse. É um desrespeito pelas pessoas. Tem-me incomodado mais isso do que as ameaças que nos fazem pelo telefone, sobretudo à minha mulher…
- Mas conseguiste a condenação em tribunal.
- Não é bem assim. Conheces aquele velho ditado: "quem se lixa é o mexilhão"- Aqui passou-se em alguma medida o mesmo. Os cérebros, com contas em offshores tiveram condenações mais leves do que os operacionais.
- Não me estás a dar novidade nenhuma. Conheço esse filme de vários lados.
- Além disso, como acontece quase sempre, sobretudo se se tem dinheiro…
- Conheces algum defraudador na miséria-
- … recorrem para a instância seguinte. O filme que te contei vai continuar por mais uns anos.
- Espero que tenhas melhor sorte que outro pessoal. De recurso em recurso se vai reduzindo a pena. Tu ainda te arriscas a transformar-te em réu por difamação!
- Apesar de muito céptico ainda continuo a acreditar na democracia e no funcionamento das instituições, mas olha que já me passou isso pela cabeça. O mundo das leis é um mundo virtual. Os homens são esmagados pelas figuras jurídicas. Entre um milhão que foi roubado, e disso ninguém duvida, e uma vírgula que não está no sítio, esta é mais importante, e o defraudador sai cantando e rindo…
- E com curriculum para fazer carreira política!
- Continuo a acreditar que a actividade política é uma actividade digna e que há muitos políticos honestos.
- Tens razão, a dificuldade é encontrá-los.
- Uma coisa te digo: estou de bem com a minha consciência, mas estou cansado de ter consciência.
- Por favor, mais duas cervejas e uns tremoços.