Carlos Pimenta, Visão on line,

1. É imperioso mostrar que tudo de bom é resultado da nossa iniciativa e tudo de mau é a inevitabilidade da actuação dos outros. Mergulhámos na crise porque esta, nascida algures longe de Portugal, actuou com a força de um terramoto e atingiu o nosso espaço, felizmente muito melhor que todos os outros. Saímos tecnicamente da crise porque temos um governo, banqueiros e industriais (porque não trabalhadores?!) com grande competência e sentido da responsabilidade. E neste sistemático "sacudir água do capote" vamos criando um estado de pânico que ajuda a acalmar as reivindicações e a aumentar a passividade cívica.
A "não inscrição" da realidade social na construção do nosso futuro, de que fala José Gil em Portugal, Hoje. O Medo de Existir, continua a marcar o nosso quotidiano: "Nada acontece... nada se inscreve - na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico" (pág. 15). Não será que nós, como actores da nossa própria história, somos os principais responsáveis pelo que nos acontece?
Para respondermos a esta pergunta de uma forma objectiva decidimos apresentar aqui alguns resultados do estudo do Banco Mundial sobre questões de governação, publicado em meados do ano transacto (Governance Matters VIII. Agregate and Individual Governance Indicator 1996-2008), procurando ver essencialmente qual foi o percurso de Portugal através desses indicadores.
2. Várias instituições promovem a avaliação da governação dos países, pelas mais diversas razões. Umas informam as empresas das potencialidades e dos obstáculos aos investimentos. Outras avaliam a liberdade de imprensa e o respeito pelos direitos humanos. Umas quantificam a percepção da corrupção pública enquanto factor obstaculizador de um bom funcionamento da economia. Outras hierarquizam os níveis de cidadania e as formas do seu funcionamento. Enfim, são muitas as tentativas de uma quantificação rigorosa da situação de cada um dos países, permitindo que todos os interessados possam aceder à informação de que necessitam. E para conseguirem esses resultados são elaborados anualmente inquéritos envolvendo dezenas de milhares de famílias e empresas, milhares de especialistas, organizações não governamentais e entidades públicas.
O Banco Mundial sistematiza toda essa informação, articulando 35 bases de dados, promovidas por 33 organizações, cobrindo 212 países e territórios, durante o período de 1996 a 2008. Trabalham com 441 variáveis. O grande mérito deste trabalho é analisar cuidadosamente cada fonte de informação, detectar a probabilidade de erro e, sobretudo, proceder a uma reorganização das quantificações (normalização) de forma a permitir comparações entre países e entre diferentes anos para o mesmo país.
A crítica mais frequente a estes indicadores é basearem-se na percepção de agentes económicos e sociais, contendo inevitavelmente um elevado grau de subjectividade. Além disso, acrescentaríamos nós, porque a sociedade mundial é fortemente diferenciada e contrastada e porque a história da globalização tende a ser contada (e gerida) pelos económico-socialmente dominantes, pode haver uma tendência, em muitas circunstâncias, para assumir o diferente, tão-somente o diferente, como algo negativo, quiçá pernicioso.
Apesar dessas limitações as quantificações são relevantes porque são a outra face de variáveis qualitativas, porque permitem cruzar e integrar informações de diversa índole e ainda porque o conhecimento do terreno por parte dos inquiridos permite romper o manto diáfano da legislação e das práticas formais e reflectir as práticas no terreno.
3. O objectivo central do estudo é analisar a governação, assumindo esta como um conjunto de tradições e instituições através das quais a autoridade é exercida num país. "Isso inclui o processo pelo qual os governos são seleccionados, monitorizados e substituídos; a capacidade do governo para efectivamente formular e implementar políticas sólidas; e o respeito dos cidadãos e do Estado para com as instituições que governam as interacções económicas e sociais entre si." (pág. 5).
Para o efeito agregam os diferentes indicadores em seis grupos:
1. Opinião e Responsabilização: participação dos cidadãos na escolha do seu governo, liberdade de expressão, de associação e de imprensa.
2. Estabilidade Política e Ausência de Violência: probabilidade de instabilidade governativa por meios inconstitucionais, incluindo a violência.
3. Eficácia Governativa: qualidade dos serviços públicos, autonomia face às pressões políticas, qualidade da formulação e implementação de políticas, credibilidade dos compromissos políticos.
4. Qualidade da Regulamentação: capacidade do governo para promover e desenvolver o sector privado.
5. Estado de Direito: confiança dos agentes sociais e respeito destes pelas regras sociais; respeito contratual; direito de propriedade; funcionamento da polícia e dos tribunais, probabilidade de crime e violência.
6. Controle da Corrupção: exercício do poder para ganhos privados, pequena e grande corrupção, "captura" do Estado por elites e interesses privados.
Certamente que o conteúdo de cada um destes indicadores pode (deve) ser objecto de uma análise crítica, assim como a ausência de outros indicadores plausíveis, quiçá importantes para o quotidiano das populações. Esperamos que cada leitor proceda a essas lucubrações. Da nossa parte limitamo-nos à função de cronista reproduzindo alguns aspectos dos índices apresentados.
Procedemos de seguida a uma leitura da situação e evolução de Portugal em cada um dos seis indicadores indicados, chamando a atenção que
" estamos a lidar com valores normalizados;
" os valores mais elevados reflectem melhor situação;
" assim como as posições mais elevadas da ordenação;
" a posição relativa de cada país varia entre 1 e 100, pelo que o seu arredondamento para um número inteiro faz com que diversos países apresentem a mesma posição relativa.
Para além da situação de Portugal fazemos algumas alusões a alterações significativas de países que, de alguma forma, estão relacionados de forma marcante com a realidade do nosso país.
As margens de erro têm diminuído entre 1996 (ano das primeiras agregações) e 2008 (último ano para que há dados). Apesar desta limitação comparamos a situação de Portugal, no conjunto de todos os países, nesses dois anos extremos. Adoptando um eixo vertical para 1996 e outro, horizontal, para 2008, os diversos países assumem graficamente a forma de pontos, enquanto Portugal é representado por um quadrado vermelho. A linha a verde, formando um ângulo de 45 graus com cada um dos eixos, separa a área das boas evoluções (abaixo da linha) das áreas de más evoluções (acima da linha). Quanto mais afastado se encontre o país dessa linha mais intensas são essas evoluções.
4. Na Opinião e Responsabilização, Portugal tem em 1996 um índice de 1,27, ocupando a 90ª posição e em 2008, um índice de 1,19 (num mínimo de -2,24 e um máximo de 1,53), com a 88ª posição:
Como se vê no gráfico Portugal está bem posicionado no contexto mundial (nos 212 países e territórios), com a posição cimeira ocupada pela Noruega. Contudo no período considerado não progrediu (neste, e nos restantes gráficos, a progressão significa situar-se abaixo da linha verde e a progressão será tanto maior quanto mais afastado estiver dela, como já explicámos). O valor mais elevado de Portugal foi atingido em 2004 (1,48) e os anos com melhor posição na ordenação foram em 1998 e 2003 (94ª posição).
5. Na Estabilidade Política e Ausência de Violência, Portugal tem um índice em 1996 de 1,15, ocupando a 90ª posição, e em 2008 1,05 (num mínimo de -3,28 e um máximo de 1,52), com a 84ª posição:
Não houve melhoria relativa, apesar de ter uma boa posição no contexto mundial. O valor mais elevado foi atingido em 2002 (1,36), ano em que teve a melhor posição na ordenação (97ª). Em 2008 a posição cimeira é ocupada pelo Luxemburgo.
Refira-se ainda que Angola teve neste indicador uma melhoria muito significativa.
6. Na Eficácia Governativa, Portugal tem em 1996 um índice de 1,00, ocupando a 83ª posição e em 2008, um índice de 1,05 (num mínimo de -2,51 e um máximo de 2,53), com a 82ª posição. Como se verifica a posição neste índice é pior que nos anteriormente referidos.
Portugal apresenta uma posição relativa mais modesta, mas apresenta uma relativa estabilidade de posição. O valor mais elevado foi atingido em 1998 (1,40), quando também atinge a melhor posição (89ª). Em 2008 a posição cimeira foi ocupada por Singapura.
No que se refere a este indicador alguns dos países mediterrânicos da União Europeia tiveram significativas deteriorações de apreciação (Espanha e Itália).
7. Na Qualidade da Regulamentação, Portugal tem em 1996 um índice de 1,03, ocupando a 88ª posição e em 2008, um índice de 1,12 (num mínimo de -2,77 e um máximo de 2,00), com a 84ª posição:
Como o gráfico mostra houve uma ligeiríssima melhoria no período considerado, o que aconteceu de forma massiva com os países em melhores posições, frequentemente mais intensa que Portugal. O ano de 2003 apresenta o valor mais elevado do indicador (1,21) embora a posição relativa melhor tenha sido alcançada em 1996 e 2002 (88ª posição). A posição cimeira em 2008 foi de Hong Kong.
Neste índice Angola apresenta uma forte melhoria de situação.
8. No Estado de Direito, Portugal tem em 1996 um índice de 1,22, ocupando a 86ª posição, e em 2008, um índice de 1,02 (num mínimo de -2,69 e um máximo de 1,96), com a 84ª posição:
Como o gráfico indica, neste importante indicador, há uma degradação da situação. O valor mais alto foi atingido em 2002 (1,27) e o mais baixo em 2006 (0,94). A posição melhor (88ª) e a pior (82ª) são atingidas respectivamente nos pares de anos 2002/2003 e 2006/2007. A posição cimeira foi ocupada em 2008 pela Noruega.
9. Finalmente, no Controle da Corrupção, Portugal tem em 1996 um índice de 1,56, ocupando a 91ª posição e em 2008, um índice de 1,08 (num mínimo de -1,90 e um máximo de 2,34), com a 83ª posição:
Nesta matéria há uma notória degradação da situação. É nos três últimos anos que a sua posição relativa é pior (83ª), embora o valor mais baixo seja o de 2006 (1,06). Estes dados confirmam a informação do índice da Transparência Internacional (ver crónica "Atenção à corrupção, mas nem só desta vive o defraudador"), mas de uma forma mais veemente, quer porque a degradação é revelada como mais acentuada quer porque os dados da TI são confirmados por mais uma dezena de fontes diferentes.
Em 2008 a posição cimeira foi ocupada pela Finlândia.
O país europeu, e da União Europeia, que neste mesmo período apresentou uma degradação muito significativa foi a Grécia.
10. Em síntese, no que se refere à boa governação a última década foi perdida. Em vez de a melhorarmos ou mantivemo-la ao mesmo nível ou piorámos. Atrevemo-nos a admitir que 2009 e 2010 serão de continuidade desta tendência.
Eduardo Lourenço (Nós e a Europa ou as duas razões) alertava que a hiperidentidade portuguesa comportava uma componente mórbida: "Quando se nasce numa comunidade deste tipo, o perigo não é o perder a identidade, é o de confundir a particularidade dela com a universalidade, o de não ser capaz, senão à superfície, de se abrir e dialogar com o outro, o de nos imaginarmos narcisicamente o centro do mundo, criando assim uma espécie de referências autistas onde naufraga o nosso sentimento da realidade e da complexidade do mundo." (pág. 14).
Não será possível romper com esta situação, revertendo o "orgulho nacional" numa capacidade de elevação ética, num reforço da memória de longo prazo, numa dignificação da maioria dos portugueses criando melhores condições de vida, mais esperança no futuro, mais confiança nas suas capacidades?
Talvez. Se, e só se, fizermos por isso.
Que cada um de nós o assuma e concretize, que os políticos percebam que governar não é uma operação de marketing eleitoral!