José António Moreira, Visão on line,

1. O PEC - Plano de Estabilidade e Crescimento tem ocupado nas últimas semanas a atenção (preocupada) dos portugueses. Tem sido discutido como uma espécie de "menu a la carte": mais despesa, menos despesa; mais receita, menos receita; aumento de impostos, não aumento de impostos. No entanto, ele é apenas o aspecto visível do acordar do país para uma realidade que o comum dos cidadãos nem sequer imaginava. E questionam-se: se o Governo tinha afirmado a "pés-juntos" que a crise já acabara; que Portugal passara ao lado da crise; que havíamos resistido melhor do que os outros países … como é possível isto estar a acontecer? Ainda por cima quando há cerca de seis meses, no âmbito da campanha para as eleições parlamentares, o Ministro das Finanças "jurava" que o défice orçamental seria, no pior dos cenários, de 5 por cento da produção do país? O facto é que passados apenas três, em final de Dezembro, o défice veio a fixar-se em mais de 9 por cento, enquanto o desequilíbrio das contas externas se aproximou de 10 por cento. Tratou-se de um acordar violento que veio colocar em causa a vidinha tranquila que, com mais ou menos esforço, todos (ou quase) vinham tendo.
2. Usando aquele "optimismo" bem português de que as coisas ainda podiam ser bem piores, pode dizer-se que até temos razão para nos sentirmos felizes, porque apesar de tudo as nossas "más notícias" não foram extremamente más. Veja-se o caso da Islândia, que apresentava indicadores de riqueza e conforto que faziam o país posicionar-se sempre no topo das estatísticas europeias; e, até por isso, os respectivos cidadãos se encontravam entre os mais felizes da Europa. Um dia tais cidadãos acordaram, bem-dispostos como sempre, e defrontaram-se com uma dura realidade: o país estava falido, não tinha condições para solver os seus compromissos financeiros, tinham de passar a viver com muito menos no futuro. Deve ter sido um choque …
3. Quer num caso, quer no outro, não podemos fugir de uma triste realidade: os governantes que elegemos para conduzirem o nosso destino colectivo andam a enganar-nos por via da omissão de más notícias que, se interiorizadas a tempo pelos cidadãos e coadjuvadas com as adequadas políticas de correcção, poderiam evitar a ocorrência de situações extremas como as referidas. E quando esses governantes, por via de nomeações ditas de "confiança política" para a administração de instituições que deveriam ser independentes do poder político - caso do banco central - as conseguem amordaçar, então o engano (mentira) tem condições para perdurar mais tempo e só ser de conhecimento geral no limite, quando não há fuga possível.
4. Pode parecer, portanto, que a culpa é dos eleitos, que mentem aos eleitores. E é, em grande parte. Porém, estes últimos são co-responsáveis, ao criarem um incentivo para que os eleitos e candidatos a eleitos os enganem. Pense-se num partido político que, num período em que não se declarou ainda uma situação económica drástica, se apresentasse a umas eleições com base num programa de austeridade, dizendo aos eleitores que se votassem nele iriam ter os seus salários reduzidos, iriam pagar mais impostos, iriam ver o seu nível de vida reduzido. Votariam os cidadãos nesse partido? É claro que não. O que nós cidadãos queremos é quem nos governe sem colocar em causa o nosso estilo de vida, as nossas "conquistas" anteriores. Está criado tal incentivo. Quem falar verdade, quem realmente quiser resolver problemas que mais tarde ou mais cedo irão explodir, não é eleito.
5. Este incentivo explica, por exemplo, o ciclo político. Um partido eleito sob o pressuposto de que não irá mexer com a vidinha dos cidadãos, mal toma posse como Governo começa a "descobrir" situações que necessitam de medidas duras. No entanto, a partir de meio do mandato a necessidade de tais medidas desaparece das prioridades da equipa governativa, que começa a cativar os cidadãos com vista à próxima eleição. Assim se explicam, por exemplo, as decisões de aumentos salariais substanciais, quando no momento imediatamente anterior a situação era da mais estrita restrição orçamental.
6. O sistema democrático, sendo o melhor de entre os exequíveis, não é perfeito. Longe disso. Para funcionar adequadamente tem necessidade de se apoiar em instituições independentes dos governantes e dos partidos políticos que possam desmontar as "inverdades" que estes dizem aos cidadãos-eleitores. A não existirem tais instituições, ou não cumprindo cabalmente a sua função, os cidadãos, por via do horror que têm às más notícias, são vítimas dos seus eleitos. Todo o sistema político se torna, então, numa imensa mentira. O que nos remete para uma pergunta: neste contexto, fará sentido que durante meses os esforços de um parlamento nacional sejam devotados a provar que um dos seus mentiu?