Aurora Teixeira, Visão on line,
"What we must decide is perhaps how we are valuable, rather than how valuable we are."
(F. Scott Fitzgerald, escritor norte-americano, n.1896-m.1940)
Não obstante todos os terríveis acontecimentos dos últimos tempos (sismos no Haiti e Chile, enxurradas na Madeira) que frequentemente nos obrigam a sair do nosso pequeno mundo, deixar de olhar (ainda que por alguns momentos) exclusivamente para o nosso umbigo e relativizar os nossos problemas , um outro acontecimento, a uma escala muito mais reduzida e aparentemente distante, concentrou parte da minha atenção e preocupação esta semana, levando-me, ainda que de forma relutante, a olhar para dentro, para o meu umbigo, o meu mundo... a academia.
No passado dia 12 de Fevereiro, Amy Bishop, 44 anos, uma investigadora formada em Harvard e professora auxiliar de Biologia na Universidade de Alabama-Huntsville (E.U.A) assassinou a tiro três colegas e feriu três outros (dois gravemente) durante uma reunião de trabalho do departamento. Diversos relatos sobre tão tresloucado acto associam-no ao facto da Universidade ter recusado à investigadora a sua tenure , ou seja, o vínculo permanente à instituição. Para se ter uma noção das implicações (danosas, em termos pessoais) de tal recusa, é importante reter que nos E.U.A (e, em certa medida, em Portugal) o resultado mais provável para alguém a quem lhe seja negado a tenure é o de deixar de ter mercado de trabalho no ensino superior, ou seja, deixar de poder exercer a função de professor. Nas palavras do presidente da Associação Americana de Professores Universitários, Cary Nelson, uma pessoa nestas circunstâncias dificilmente conseguirá um outro emprego no ensino.
Apesar de circular na Internet um conjunto de relatos bastante contraditórios sobre a personalidade, comportamento, desempenho pedagógico e científico de Amy Bishop, um aspecto problemático é incontornável neste processo: um dos seus artigos, publicado em 2009, levantou suspeitas de fabricação (uma das formas mais censuradas de fraude académica nas áreas das ciências da vida) na medida em que a autora refere um laboratório fictício como local para as suas experiências e entre os seus co-autores constam os seus filhos de idades compreendidas entre os 10 e os 18 anos.
É um facto quase indiscutível que a competição pelas posições de tenure na academia tem colocado uma pressão crescente nos académicos para a publicação dos seus trabalhos de forma prolífera e frequente. A expressão "Publish or Perish" (Publica ou Morre) é (tristemente) conhecida no meio académico e refere-se a essa sufocante pressão para publicar constantemente de modo a progredir ou mesmo manter uma carreira académica. Um académico que não publique ou publique com pouca frequência, com elevada probabilidade falha na obtenção da tenure , independentemente do seu desempenho pedagógico. Isto é tão verdade nos E.U.A como em Portugal.
Poder-se-á anuir que é preciso um pouco de uma natureza má e preguiçosa, combinada com circunstâncias extremas, como enorme competição por fundos de investigação, pressão para publicação e luta pelo reconhecimento dos pares, para se praticar a fraude, em concreto a fraude académica.
A propósito do carácter dos indivíduos, Gerard Reve (n.1923-m.2006), um famoso escritor holandês, referia frequentemente que a maior parte dos seres humanos tem uma natureza maldosa. Para este autor, metade da maldade num indivíduo era inata e a outra metade resultaria de uma opção pessoal. Adicionalmente, reconhece que sobre esta última o contexto pode exercer uma influência não negligenciável: até as pessoas mais decentes e civilizadas podem se tornar (muito) más em circunstâncias extremas. Assim, não há razão para crer que os académicos sejam uma excepção, tal como o caso de Amy Bishop dramaticamente comprova...
De facto, diversas circunstâncias institucionais podem contribuir, e mesmo incitar, a fraude académica: uma estrutura fortemente hierárquica onde o chefe (indivíduo ou grupo de indivíduos com poder de decisão) é soberano (e muitas vezes ditador) e a competição extrema que força investigadores com mentes mais fracas a secumbir à sedução de atalhos eticamente questionáveis e, em regra, fatais em termos de reputação académica ("Plagiar - publicar - morrer").
Num registo complementar a Reve, mas de forma ainda mais apocalíptica, Platão defendeu que apenas de forma involuntária um indivíduo age com integridade. Ele ilustra quão difícil é agir com integridade através da história mítica de Gláucon e o Anel de Giges. O anel tornava Giges invisível e uma vez invisível Giges mudava o seu comportamento. Com o anel, a integridade de Giges desaparecia como o orvalho da manhã. Segundo Platão, quando alguém está seguro de que as suas acções não serão descobertas e efectua as mesmas decisões que efectuaria no caso de estar seguro que seriam descobertas, estaríamos perante uma pessoa que age com integridade. A integridade baseia-se assim no compromisso pessoal à realização de uma acção correcta, opera num espaço entre o estímulo e a acção onde a pessoa exerce a liberdade de realizar a escolha correcta.
Muitos investigadores/professores, tal como Amy Bishop, mergulhados num mundo académico de publica ou morre , agem como Giges, na esperança dos seus actos (menos lícitos) permanecerem invisíveis no seio das suas comunidades, ficando presos na (Alegoria da) Caverna de Platão. Na lógica do publica ou morre , a competição (desenfreada) dos membros da faculdade pela sobrevivência não reside na qualidade da publicação ou na sua contribuição para a sociedade, mas unicamente no seu número de publicações. Cada um acredita que é o número de publicações que constitui a medida do sucesso académico. São incapazes de ver para além das sombras e de reconhecer que pode existir uma verdade maior para além da caverna .
A clausura de Amy na caverna não é apenas da sua inteira responsabilidade. Tende a ser criada e promovida por uma cultura académica que defende a integridade e a qualidade da investigação mas cuja prática recompensa os números, a quantidade. É um facto que a cultura académica do publica ou morre tem gerado a publicação de artigos inconsequentes, não lidos e não citados por outros académicos.
Acredito que Amy, e os seus pares em geral, poderiam efectuar melhores escolhas e acolher um sentido de mutualidade onde os membros da faculdade trabalhassem de forma colaborativa no sentido de preservar a integridade pessoal, profissional e institucional. Cada membro da comunidade académica tem a responsabilidade de criar e manter este clima. Num determinado nível tal pode exigir a ajuda de um mentor: um membro da faculdade que entende as pressões associadas à cultura académica do publica ou morre. O mentor guiaria Amy para fora da caverna em direcção à luz. Ela necessitaria de ultrapassar as suas crenças e valores correntes num processo doloroso pois implicaria uma perda; no entanto, se o seu mentor fosse capaz de substituir o seu anterior sistema de crenças por um mais credível baseado na integridade pessoal, Amy possivelmente entenderia os benefícios de tornar mais íntegras as suas acções e valores. Infelizmente, no caso de Amy, o caminho da caverna para a luz desmoronou-se e com isso a vida de três potenciais mentores...
Seria bom que também na academia portuguesa pudéssemos aprender com as nossas fraquezas, vaidades e erros, nos ajudássemos mutuamente a sair da caverna e encontrar a luz de modo a impedir a fraude académica e a esquizofrenia do publica ou morre e, no limite, do publica e mata.