Aurora Teixeira, Visão on line,
Ninguém pode, por muito tempo, ter um rosto para si mesmo e outro para a multidão sem no final confundir qual deles é o verdadeiro, in «A Letra Escarlate» de Nathaniel Hawthorne [1804-1864], Escritor.
Quando é referida a questão da fraude académica, em geral pensa-se imediatamente nos estudantes e os respectivos subterfúgios para ilicitamente obter aprovação a uma disciplina (via copia nos exames) ou obter um grau (via submissão de uma dissertação plagiada, em parte ou no seu todo). É muito mais raro se pensar em investigadores, nomeadamente em investigadores da área médica.
Num artigo publicado no Journal of Medical Ethics, Erica Pryor, Barbara Habermann e Marion Broome inquiriram 1645 coordenadores de investigação nos EUA, os quais apesar de terem admitido que a dimensão da fraude na investigação médica era baixa (0.2%-0.5% dos inquiridos afirmaram que o plágio e a falsificação de resultados ocorria frequentemente, sendo que para 5.2%-4.0% ocorria ocasionalmente), em 18% dos casos reportaram que no ano transacto haviam enfrentado a sua primeira experiência com 'más condutas' em projectos de investigação.
Nicholas Steneck, Director do Programa de Ética e Integridade na Investigação do Michigan Institute for Clinical and Health Research e Professor Emeritus de História na Universidade do Michigan, numa comunicação apresentada por ocasião da Conferêrncia Mundial em Integridade na Investigação que teve lugar na Fundação Gulbenkian em Setembro de 2007, afirmou que as 'más condutas' na investigação médica não são casos 'raros', são antes dificilmente detectados, reportados e investigados.
O ano de 2009 ficará certamente na história da investigação médica pelas más razões: ocorrência de um dos mais sérios e alarmantes casos de fraude e má conduta académica por parte de um dos investigadores mais conceituados internacionalmente na área da Anestesiologia, o Dr. Scott Reuben do Baystate Medical Center (Massachusetts, EUA). O que é intrigante neste caso é que a fraude envolve toda uma carreira de investigação e não apenas um estudo. Segundo o Anesthesiology News, este médico-investigador inventou e falsificou dados em pelo menos 21 estudos publicados em revistas científicas entre 1996 e 2008. A fraude foi detectada após diversas questões terem sido levantadas sobre dois estudos relativamente aos quais o Dr. Reuben não tinha ainda recebido a aprovação para conduzir experimentações em humanos. Em mais de 15 anos, o Dr. Reuben nunca tinha obtido um estudo negativo. Muitas das suas experimentações envolviam medicamentos (Celebrex e Lyrica) da empresa farmacêutica Pfizer, que financiou a sua investigação entre 2002 e 2007, e todas essas experimentações registavam que os medicamentos eram efectivos nas dores pós operatórias.
Segundo diversos especialistas na àrea, os médicos, por todo o mundo, têm usado os resultados do Dr. Reuben extensivamente. A investigação produzida pelo Dr. Reuben teve um impacto tremendo na àrea da Anestesiologia. Assim, os pacientes foram desnecessariamente colocados em risco e recursos financeiros avultados foram desperdiçados em tratamentos não eficazes e potencialmente perigosos para a saúde.
Para além destas implicações negativas não negligenciáveis, este triste episódio trouxe consequências igualmente gravosas a um diferente nível: avalou profundamente a confiança dos cidadãos na classe médica.
E assim se «anestesia» o juramento de Hipócrates ...