José António Moreira, Visão on line,

Para mim, a aquisição dos submarinos para a Marinha Portuguesa foi o equivalente à compra de um brinquedo caro para o filho por parte de pais com reais dificuldades financeiras. Mas, tomada a decisão, consumado o acto, pensei que o caso estava encerrado. Eis quando, mesmo antes de estarem construídos, os submarinos começam a "emergir", por via das comissões.
Primeiro, as comissões monetárias que alguém pagou a outrem para obter um determinado efeito aquando da tomada da decisão de compra e da escolha do concorrente à construção dos submarinos. Quero pensar que isso não terá nada a ver com o facto de não se ter adjudicado a empreitada a quem fazia o preço mais em conta. Aliás, comprar os submarinos de mais elevado preço até pode ter uma justificação perfeitamente plausível. Eu, por exemplo, quando tenho de comprar um perfume para oferecer, na dúvida, por que não sou perito no assunto e todos me parecem cheirar de igual modo, compro sempre o mais caro. Admito (erradamente, eu sei) que associada ao preço mais elevado está a melhor qualidade.
Segundo, as comissões de "peritos" formadas para controlar o processo de aquisição dos submarinos. Em especial, a comissão que controlaria as contrapartidas financeiras (designemo-la por CCC) que o consórcio ganhador ficou de proporcionar ao país. Conhecido o histórico nacional de eficácia no controlo deste tipo de contrapartidas, não é difícil adivinhar que qualquer consórcio que minimamente tivesse feito o trabalho de casa podia facilmente "abrir a boca", oferecer este mundo e o outro, pois no fim do processo ninguém ia controlar nada e, por isso, tudo se resumiria a uma vã promessa. Parece que foi o que até agora tem acontecido. Cinco anos depois do início de vigência do contrato, a CCC não sabe concretamente o que já foi entregue como contrapartida. O consórcio diz que já entregou parte substancial, a CCC diz que não. E não se está a falar de "trocos". Tudo é denominado em grandezas de muitos milhões.
Arrepio-me sempre que se fala na constituição de mais uma comissão. Talvez eu esteja a ser injusto para com as comissões que funcionam. Mas a ideia com que sempre fico é que tal constituição é mais de meio caminho andado para empatar as coisas. É como se, nomeada a comissão, todos - quem nomeia e quem é nomeado - relaxassem, com a consciência tranquila do dever cumprido. Veja-se o que acontece, por exemplo, com as comissões de protecção de menores. Talvez seja coincidência, mas sempre que existe um "azar" constata-se, com tristeza, que a comissão existia mas, efectivamente, não funcionava. Quase como uma câmara de vigilância que se julga activa mas que, aquando do assalto, no momento em que são necessárias as imagens do criminoso, se conclui que afinal estava desligada, pois a pessoa paga para a gerir se esquecera de colocar o interruptor na posição "on".
Somos o país das comissões … que não funcionam. Há dias, noite alta, com insónia, dei comigo a pensar sobre a razão dessa inoperacionalidade. Julgo ter encontrado uma causa, entre muitas outras que certamente existirão.
Em qualquer organização que se pretende bem gerida, a existência de um eficaz sistema de controlo interno é elemento básico para, entre outros efeitos, evitar erros e lapsos, no limite obviar à ocorrência de situações de fraude. Entre as determinantes do bom funcionamento desse sistema está a denominada "divisão de tarefas". É um princípio muito simples, mas muito poderoso se adequadamente implementado. Implica, por exemplo, que quem faz a emissão das facturas na organização não deve participar na respectiva conferência; quem trata da contabilidade (registos) não deve ter acesso à tesouraria (guarda do dinheiro). No caso da Justiça o princípio também se aplica, e quem julga um crime não deve ter participado na instrução do respectivo processo acusatório. Subjacente a esse princípio e à sua correcta implementação está a necessidade de assegurar a independência entre as partes intervenientes, entre o "controlador" e o "controlado". Na ausência dessa independência, existindo situações de conluio entre as partes, o princípio não funciona e estão criadas as condições para a ocorrência de fraudes.
Transponha-se isto para as comissões e respectiva inoperacionalidade. O que parece acontecer é que falta a tal independência entre quem as nomeia e quem é nomeado. O conluio, ainda que informal, assenta na cor partidária comum a ambas as partes. Não existe um verdadeiro controlo do comitente sobre o comissário. Ambos têm interesse em proteger a outro. O comissário não quer ter actuação que possa colocar em causa quem o nomeou, porque isso corresponderia a hipotecar a possibilidade de ser chamado no futuro para uma qualquer outra comissão. Por sua vez, quem nomeia não tem interesse em punir o comissário quando este não cumpre a sua função, pois teme que isso, aos olhos da opinião pública, coloque em "cheque" o partido e dê trunfos aos adversários políticos.
Neste contexto, de ausência de independência, existem condições para todas as arbitrariedades, espaço para todos os desleixos. As comissões tornam-se numa fonte de rendimento para os comissários; são o mero cumprir de um qualquer preceito legal para quem a nomeia. Mas o efeito nefasto deste estado de coisas não se circunscreve à vertente financeira associada aos respectivos custos de funcionamento. É mais profundo, sendo particularmente danoso para a transparência democrática da coisa pública. As comissões estão para essa transparência como as "cargas de profundidade" estão para os submarinos. São destruidoras.
O que se passa com as comissões passa-se também, de um modo mais alargado, ao nível da administração pública genericamente considerada. Os "cargos de nomeação política", que ocupam formalmente os níveis hierárquicos superiores dessa administração, mas na prática, informalmente, acabam por se propagar até à respectiva base, são o antídoto contra o funcionamento adequado do princípio da "divisão de tarefas". Com todas as consequências para o erário público e para a confiança dos contribuintes no sistema democrático. Será por acaso que, tendo Portugal uma administração pública de maior dimensão comparativamente a boa parte dos países europeus parceiros, os portugueses recebem da parte dela proporcionalmente menor quantidade de serviços e de pior qualidade?